Conheci Baruch Espinosa em magistrais aulas da querida professora Marilena Chauí, na FFLCH-USP, décadas atrás. Poucas construções de reflexão acadêmica contribuíram tanto para a minha formação intelectual.
Aqui no escritório, enquanto escrevia sobre a ignomínia bolsonarista do 7 de Setembro, meu olho esquerdo foi atraído a um volume discreto na estante.
Trata-se do formidável "Tratado da Emenda do Intelecto", em uma bela edição da Editora Unicamp, com introdução, comentários, versão em Latim e versão traduzida em Português.
É impressionante como a Filosofia, não qualquer uma, mas a boa Filosofia, pode explicar o engano, a ilusão, o erro e a estupidez humana. Como essa dos otários que celebram o Tio Sam na data da independência do nosso Brasil.
Fiquei, pois, a imaginar o correto, inteligente e generoso Espinosa na sacada de um prédio, na Avenida Paulista, a observar lamentoso os faniquitos dos parvos em uniforme amarelo.
No livro citado, que é fácil de ler e compreender, o holandês de origem sefardita, nos oferece um maravilhoso método para melhorar o entendimento, emendar o intelecto e, assim, alcançar a verdade e a felicidade.
Ele não usa esse termo, mas basicamente começa dizendo que precisamos desaprender. Ou seja, é fundamental que nos livremos de ideias adulteradas, distorcidas ou confusas.
Segundo ele, existe um conhecimento inadequado, que é baseado em conceitos parciais, imprecisos, incorretos, baseados em experiências particulares ou emoções pessoais. Eles conduzem a paixões e a graves erros.
Essa "saber" deriva do "ouvi dizer", do senso comum do grupo e de percepções enviesadas de dramas isolados, tomadas como referência para explicar situações gerais.
O conhecimento adequado, ao contrário, resulta de ideias claras, precisas e colocadas à prova no mundo real. É o que aprendemos ao avaliar de forma integral um problema, adotando diversos pontos de vista, dissencando-o em todas as suas dimensões.
Espinosa fala em três formas de conhecimento:
- Por experiência ou opinião. É baseado em percepções sensoriais diretas ou relatos de outras pessoas. É suscetível a enganos. Especialmente porque valoriza a parte em detrimento do todo.
- Pela razão. É baseado na reflexão, que deriva do estudo metódico. Exige identificação das causas e das relações gerais. É um saber de integralidade analítica. Cada tese se submete ao crivo epistemológico do observador-investigador.
- Pela intuição. Essa é a forma mais elevada de conhecimento. Captura a essência das coisas, permitindo uma compreensão profunda da realidade. Veja bem, não é o achismo ou a ideia do vidente místico. Muito pelo contrário.
É um exercício supremo da racionalidade, de modo que o observador-investigador pode categorizar cada fenômeno de forma precisa, depurando-o em seu complexo filtro de ideias.
Era aquele saber holístico, que pode até contemplar a magia, mas a partir do crivo da razão, especialmente do ponto de vista ético.
É aquela sabedoria de gente como Aristóteles, Jesus, Adriano, Thomas Morus, Luther King, Jr., Marx, Gandhi, Malatesta, Einstein, Hawkins, Gautama, Maya Angelou, Mandela, Emma Goldman e o próprio Espinosa.
Na liberdade intelectual concebida por Espinosa, o homem liberta-se das paixões e é guiado pela razão, mesmo que ela admita a existência de Deus.
Para o grande filósofo, liberdade não é fazer o que se quer. Na verdade, é decifrar os códigos da natureza, entender suas demandas e agir de acordo com a razão, com adequado propósito, na busca de compreensão e solução.
Se interpretamos, de fato, os caprichos minúsculos da realidade, somos mais livres (do erro, da superstição e do fanatismo) e podemos ser mais felizes, em comunhão empática com a natureza e com o coletivo das outras mentes pensantes.
O desenvolvimento do intelecto exige um estudo permanente das ciências e dos elementos da lógica. Pede também uma investigação e uma reflexão profunda das causas dos fenômenos e das relações entre os acontecimentos.
No conhecimento inadequado, temos a ignorância persistente, a consequente paixão e, por fim, a escravidão interior.
No conhecimento adequado, temos o interesse genuíno e honesto pelo saber, o apelo à razão, o exercício analítico do pensamento e, como prêmio, a liberdade real e a felicidade interior.
Peço desculpas pelo resumo raso, mas é coisa lida há 40 anos. Também me penitencio antecipadamente por uso de termos inexistentes na obra ou neologismos, empregados (por minha conta e risco) para gerar maior clareza à mensagem.
Peço licença para elencar algumas ideias do companheiro Espinosa para clarificar os conceitos.
- O conhecimento verdadeiro liberta da escravidão das paixões.
- A razão é o caminho para compreender a ordem da natureza.
- O estudo, a reflexão e a lógica são ferramentas para emendar o intelecto.
- A imaginação nos engana quando confunde experiência parcial com verdade.
- As paixões desordenadas decorrem da ignorância da causa das coisas.
- A felicidade surge da compreensão racional e intuitiva da realidade.
- O conhecimento intuitivo é a forma mais elevada de compreensão humana.
- Quanto mais entendemos a essência das coisas, mais agimos em harmonia com a natureza e conosco mesmos.
Enfim, deve ser por essa razão que a extrema-direita (fascista e proto-fascista), no mundo inteiro, em qualquer tempo, odeia tanto os intelectuais e o pensamento racional.
Pensar de verdade, a partir da investigação científica da realidade, representa, na noite escura da ignorância, alcançar a estrada larga e iluminada do conhecimento.
É essa liberdade de ver, com clareza, que os tiranos relutam em conceder ao cidadão comum."
*Texto do Jornalista Walter Falceta. Imagem das redes sociais.