terça-feira, 12 de novembro de 2024

A Geografia Cultural e Carcará de João do Vale e José Cândido

Imagem adaptada de Pinterest, 2024.

Por Belarmino Mariano*

A Geografia não é apenas uma Ciência, pois se olharmos direitinho, veremos que ela abrange um complexo sistema de conhecimentos (Aldo, 2008), entre estas diferentes linhas e campos de investigação encontramos na geografia humana e social as bases para a Geografia Cultural, que vai desde os clássicos (Claval, 1999) ao uma Nova Geografia Cultural  (Rosendahl; Corrêa, 1999). Nessa perspectiva teórica nascem muitas e diferentes abordagens e percepções sobre os fenômenos culturais de um lugar, região ou país. 

A Cultura popular brasileira (Araújo, 2007) é muito rica em diversidade e construção histórica, exigindo dos estudos aprofundamentos em detalhes e cuidados com a abordagem pois para cada lugar ou região, essa cultura se reveste de peculiaridades que tornam o simples e popular em uma teia complexa de possibilidades. 

Fonte: https://www.opovovitoria.com/2020/07/carcara.html

Neste pequeno artigo escolhemos analisar "Carcará", uma das mais belas e representativas canções dos cantores e compositores brasileiros João do Vale e do poeta José Cândido da Silva, que décadas depois contou com a participação de Chico Buarque de Holanda, que juntou dezenas de artista para fazer um tributo a João do Vale e suas composições populares magistrais (https://www.cifraclub.com.br/joao-do-vale/carcara/). 

O Carcará de João do Vale é uma ave do bioma da caatinga nordestina, de acordo com Marcus (2020), a palavra carcará é de origem (Tupy), e cientificamente é da família (falconidae); e do latim  (plancus, plangos), semelhantes a águias, que emitem o som agudo "cará, cará". Daí a expressão indígena baseada na sonoridade emitida pelo pássaro.

Outro importante aspectos dos estudos da Geografia Cultural é o seu regionalismo, quando existem elementos naturais, históricos e culturais fortes e capazes de gerar identidades regionais próprias como o Poeta Jessier Quirino  (Mariano, 2020).

As canções, os cancioneiros, poetas e a exploração dos valores regionais alimentaram o cantor e compositor maranhense João do Vale, como muitos outros nomes da música popular brasileira que deitou fortes raízes oriundas do povo nordestino, sua região castigada pelas secas ou estiagens e suas paisagens de vegetação espinhosa e ressecadas pelas condições climáticas quentes e secas (semiárido).

De acordo com  Nova Brasil FM (2022), Carcará é uma composição lançada em 1965 e está entre as composições críticas ou de protesto muito comuns entre as décadas de 1960 e 1970, período em que o Brasil viveu os piores horrores da "Ditadura Militar" e em sua primeira versão foi interpretada pela Jovem cantora Maria Bethânia, que na época tinha apenas 17 anos de idade e esteve ao lado outros grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB).

A Música pode ser interpretada sob diferentes aspectos, pela simples natureza do animal em seu habitat, tendo que dividir suas presas com os humanos e por esses é assim interpretado, como um animal malvado, uma ave de rapina, furtiva e perigosa para pequenos animais recém  nascidos.

Por outro lado, também pode ser interpretada na perspectiva antropomorfa, como a figura dos homens maus que maltratam outros homens e até os animais. O carcará como um gavião ou águia faz suas caçadas em diferentes condições e hostilidades.

A ideia é pensarmos na perspectiva de Boas (2010), que o Carcará pode representar uma mente do ser humano integrado a natureza primitiva, capaz de lutar com unhas e dentes pela vida, ou melhor, quando preciso for, desafiar as possibilidades para garantir o sustento e sobrevivência sua e dos seus, nas condições mais adversas e contraditórias.

O compositor destaca que o Carcará caça até nas roças queimadas, quando os camponeses tradicionais do Nordeste, faziam queimadas e coivaras para a limpa dos terrenos e muitas vezes, os animais como cobras morriam e eram caçados pelo Carcará, que em seus olhos de águias e voos rasantes não deixavam escapar nada.

Em outros momentos, quando vinham as chuvas e a vegetação se tornava verde, escondendo as presas entre as folhagens, o Carcará atacava as fazendas e criações dos próprios camponeses. Então o carcará sobrevoava os currais ou as áreas de pastagem dos vales e capturava os burregos, cabritos, galinhas e outros animais de pequeno porte e recém nascidos que estivessem de bobeira.

Esse é um dos motivos para o nordestino considerar o carcará como um animal malvado que voa alto e "quando vê roça queimada como até cobra queimada". O compositor se utiliza de expressões e dizeres populares como burrego e "imbigo" se referindo aos filhotes de carneiros e umbigo, pois quando esses animais nascem, ficam com parte da placenta e umbigos expostos e liberam fortes odores capazes de atrair o carcará.

João do Vale também pode está tratando sobre o processo doloroso de migração rural urbana e inter-regional que eram muito comuns no período em que fez a composição, lembrando que ele próprio viveu esse processo de migração, quase que forçada, para buscar novas oportunidades em grandes centros urbanos (Santos, el al, 2010).

Na Geografia Cultural existem diferentes interpretações pois a poesia nos permite pensar também o espaço, o território e a paisagem em que acontecem os argumentos poéticos e musicais dos compositores. A ideia aqui é situar todas estas condições de análise geográfica e como será possível encontrar geografia em Carcará.

Na primeira versão de Carcará (1965), Maria Bethânia faz a abertura com uma prece: "Glória a Deus Senhor nas altura e viva eu de amargura nas terras do meu senhor". Em seguida faz uma interpretação divina da composição e ao final, denuncia que em 1950 mais de dez milhões do nordestinos viviam fora dos seus Estados de origem, como um povo migrante por falta de politicas públicas para garantir a continuidade em seus territórios de origem.


A composição e a canção é dramática e melancólica, mais exalta a ideia de força, coragem e espiritualidade (Alves, 1999), de um povo que se espelha nas forças da natureza e na luta cotidiana para encontrar o abrigo e o alimento sagrado, mesmo que precisem migrar, pois precisam viver e que não vão morrer de fome.

Em pesquisa no buscador do próprio "youtube", com a palavra Carcará, foram sugeridos dezenas de vídeos com interpretações da composição de João do Vale e José Cândido: Maria Bethânia, Nara Leão, o próprio João do Vale com Chico Buarque e depois com Clara Nunes, Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Alceu Valença, Trio Nordestino, Lucy Alves, Ayrton Montarroyos, Dorgival Dantas, Tribo de Gonzaga, Otto, Barbatuque, sem falar que em grandes shows é comum essa composição ser cantada, além dos cantores de barzinhos. A música também já foi usada em peças de teatro, documentários de cinema e novelas.

A Geografia Cultural pode convidar os pesquisadores para estudos de literatura, poesia e música como fenômenos sociais e culturais capazes de revelar situações e identidades geográficas que se manifestam nos lugares, regiões, paisagens, espaços, ambientes e territórios em complexas relações profundamente interdisciplinares. 

*Forma correta de citação deste Artigo:

MARIANO NETO, Belarmino. A Geografia Cultural e Carcará de João do Vale e José Cândido. Guarabira/PB. Blog: carcaradonordeste.blogspot.com. Terça-feira, 12 de novembro de 2024. Disponível <https://carcaradonordeste.blogspot.com/2024/11/a-geografia-cultural-e-carcara-de-joao.html>, acesso em...


REFERÊNCIAS 

ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo: Loyola, 1999.

ARAUJO, Alceu Maynard. Cultura Popular Brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes 2007.

BARBA, Fernando. BARBATUQUE. Carcará - Barbatuque / corpo do Som. São Pauo, 2010. Disponível < https://www.youtube.com/watch?v=9GuvFw9f_XQ>, acesso em 12/12/2024. 

BOAS, Frans. A mente do ser humano primitivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

CLAVAL, Paul. Geografia Cultural. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999. . Espaço e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

DANTAS, Aldo; GALENO, Alex (Orgs.). Ciência do complexus: ensaios transdisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2008.

Nova Brasil FM. #3 ForasDeSérie | MARIA BETHÂNIA: A história da canção “Carcará”. São Paulo: Nova Brasil FM, 30/08/2022. Disponível <https://novabrasilfm.com.br/notas-musicais/maria-bethania-a-historia-da-cancao-carcara>, acesso em 12/12/2024.

MARCOS, Caio. Carcará. Vitória/BA, julho, 24 de 2020. Disponível <https://www.opovovitoria.com/2020/07/carcara.html >, acesso em 12/11/2024.

MARIANO, Érica Gomes da Costa. Geografia Cultural e Regionalismo Nordestino na Perspectiva da Poesia Popular de Jessier Quirino (Monografia). Guarabira/PB: UEPB, 2020. Disponível < https://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/29343/1/TCC%20ERICA%20MARIANO%202020%20Vers%C3%A3o%203.pdf >, acesso em 12/11/2024.

MECHICA, Débora. Carcará - Maria Bethânia (Maria Bethânia - Missa Agrária e Carcará - LP De Manhã,1966 - Faixa 07 - Lado 2). Brasil: Youtube, 2013. Disponivel <https://www.youtube.com/watch?v=RryUj5FKnwI >, acesso em 12/11/2024.

ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. Apresentação. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 7-13. (Série Geografia Cultural).

SANTOS, Mauro Augusto dos (et al).  Migração: uma revisão  sobre  algumas  das  principais teorias. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010.  Disponível em: < https://core.ac.uk/download/pdf/6314064.pdf> Acesso em 09 abr. de 2019.

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