Por Belarmino Mariano*
Em nada parecia um sonho, era como se fosse um fragmento existencial fora de contexto temporal em lugar nenhum, uma espécie de 'déjà vu', combinando a vida fora do lugar.
Quando cheguei em casa em uma manhã nublada do final de setembro. Tinha tomado banho e em seu leito, se preparava para almoçar. Cheguei vagarosamente e lhe cumprimentei com um sorriso no rosto e segurando em suas duas mãos com carinho.
Com 91 anos de idade, me observou como se fosse um enigma a decifrar. Quem é? Essa interrogação fez eco no quarto em penumbra. Eu estava com 61 anos e existiam 30 anos nos separando. Esse lapso de existência me confundiu completamente e fiz a mesma pergunta em minha mente.
Parecia um koan budista ecoando em nossas mentes. Não havia consciência declarada e a dúvida ou desespero tomou conta de mim mesmo. O que estava fazendo ali? Quem era aquela pessoa, naquele cenário familiar?
Tudo era puro enigma e suas memórias estavam perdendo vigor e, igual aos refugiados, aquela pessoa enfrentava dificuldades em relembrar nomes, pessoas e lugares. Sua acompanhante explicou que estava tudo bem e que aqueles lapsos de memórias eram comuns.
Lhe perguntei o que eu estava fazendo ali? Quem era? Onde eu estava? A jovem enfermeira me respondeu bem simples. Sou sua primeira neta, ele acordou cedo e contou que havia sonhado com você, vindo lhe visitar só agora.
Não soube explicar, mas disse que você era um homem confuso, era um péssimo poeta e escrevia textos marginais e repugnantes. Parecia até o profeta Oséas e seus duros versículos contra os próprios judeus em declínio da fé. Disse que estava relembrando dos seus escritos rebeldes sobre a obscuridade e limites do seu tempo.
Suas rugas e sua fisionomia familiar, seu traços e seus olhos castanhos claros e distantes, despertou a minha consciência e acordei como se tivesse feito uma viagem astral de trinta anos. Lembrei de meus dias e acredito ter me encontrado em meu próprio leito de morte.
Por Belarmino Mariano. Imagem do autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário