sábado, 2 de novembro de 2024

A Morte Espetacular

Por Belarmino Mariano.

Filhos do estupro ou abortados pelo medo, homens. Violação patriarcal do divino, violência matriarcal em estar vivo. Morte calada que rebusca nas cinzas a poeira cósmica da noite, que esconde o sono e que não permite a embriagues dos sonhos.

Quando ocupei o útero de gaia ainda não era homem, mas apenas sonho. Gaia Gerou do sêmen solar a luz da vida que germina em suas entranhas fecundas.

Primeiro um pó de luz se espalhando pelos recantos e imaginários olhos de mulher, que chora, grita, e sorrindo cria nas profundezas do ser os cristais para o novo e desprendido movimento do nascer galáctico.

O filho de uma nova idade, fluído de uma aromática essência de mulher que chorando se corta por dentro e sangra um vermelhado e violento momento matriarcal em explosão quântica.

A noite  resumida a uma madrugada de mortes incertas. Parece uma nevasca eterna congelado a tudo e a todos. São tantos os espaços da morte que até o vazio se desespera com o espetáculo que é a certeza da morte. 

Como garrafas de vinho vazias representa os devaneios humanos, a morte das uvas e o nascimento dos sonhos que embebidos pelo doce/amargo, seco/suave traz na sua idade o sabor de uma vida, presa e enfrascadora de energias que, em estado líquido, tinto, branco ou rose, pode derramar-se sobre o corpo, a alma, a calma e a alegria. 

Pode libertar-se, ser vinho, rio correndo pelo pensar e passar dos que se tornam vinhos em suas fantasias fermentadas. Deuses embebidos pelo sangue derramado, deus que engolem os próprios filhos como se fossem alimentos frescos, banhados no azeite ou cordeiros assados nas brasas cósmicas.

Te vê do alto com um voar de homem-pássaro, tua contradição dilacera todos os sentidos de um apocalíptico alfa do gradativo vitral nadesco a se apagar e, sem a luz perdi de ver o brilho dos teus olhos, perdi de ver de vez o que, talvez não veja jamais. 


Em fractais do desconhecido e nos pensamentos de Ariano (...)"Eu vi a morte, com manto negro, rubro e amarelo. Vi o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de coral da desumana. Eu vi o estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e esquisitos. Na mão direita a cobra cascavel, e na esquerda a coral, rubi maldito. 
(...)Na fronte uma coroa e o gavião, nas espáduas as asas deslumbrantes que ruflando nas pedras do sertão, pairavam sobre urtigas causticantes, caule de prata, espinhos estrelados e os cachos do meu sangue iluminado. 
(...) Mas eu enfrentarei o sol divino, o olhar sagrado em que a pantera arde. Saberei por que a teia do destino não houve quem cortasse ou desatasse.
(...) Ela virá a mulher aflando as asas, com os dentes de cristal feitos de brasas e há de sagrar-me a vista o gavião. Mas sei também que só assim verei a coroa da chama e Deus meu rei assentado em seu trono do Sertão."(Ariano Suassuna, Poesia Viva, 1998, CD:14 e 15).

Estes fragmentos de sonetos, carregados de signos, enigmas e imagens únicas são os elementos da morte, percebidos por Suassuna (1998). Nesse imaginário, as figuras da morte, vestida com adereços de elementos da natureza sertaneja, nos fazem viajar pelas palavras para na morte a sublimação da carne, onde o sol é um testemunho vivo de tal sede. 

Assim, símbolos da natureza semiárida são ressaltados como poderosos e sagrados, no ponto do divino centralizar sua força nestas terras. Em outras partes do soneto, Suassuna ressalta a morte como um toque inapelável do divino, maciez, vida e obscuro toque de um Deus no homem.

O lugar e seus elementos como o gavião, a cascavel, a coral, a vida e a morte como figura feminina, que em suas palavras ganham um profundo significado, também lembra Saramago (2005), sobre as "Intermitências da Morte".

O destino, outro elemento muito forte na cultura nordestina, que em sua “triste partida” pode estar traçado, e diante da morte é preferível vagar pelas terras alheias, na espera de um dia voltar. Pois o destino traçado em suas mãos vai além de seus poderes terrenais. Cultuar a morte é sagrado por demais.

Morte espetacular, em todos os seus elementos de arte. A morte possui a arte de matar. A morte mata o tempo e morrer é muito natural e todo tempo é da morte, é de morrer. O ato de morrer parece o fim da vida, animal ou vegetal, mais existem incertezas.

Pode ser uma entidade imaginária, crânio humano sobre ossos e cinzas. Morte agônica, súbita, neurocerebral e irreversível. A morte cósmica de uma estrela, grande e natural morte. Morte matada não natural. Morrida, natural. Por doença, violenta, rápida, imprevista. Desastre, homicídio, suicídio. Chorada, cantada, lastimada, irremediável.

A morte de um amor ou de um rancor. Cores incolores pouco vivas, pálidas, mortas, brancas, pretas em coloridas e transparentes almas. Tudo na morte é um espetáculo. Milhares de pessoas todos os dias e noites. A cor incolor da morte, tecida em luz e trevas, ausenta e apresenta-se ao sair dos esconderijos, em seu clandestino silêncio, representa a contemplação nua dos deuses com seus toques mágicos de mulheres em seda, morim e cetim. Tintas e cores tecidas no multicolorido matar incolor. 

Um espetáculo aos vivos torcedores ou líderes nacionais, com bandeiras sobre os caixões, fogo das paixões cremam em lágrimas, enquanto as flores murcham e as moscas acompanham o cortejo fúnebre, como carpideiras que ganham a vida com choros teatralizados e rezas ao vivo e a cores.

Era um anjinho, menos de um ano e já foi consumo pela perversa. Cedo de mais para seus oitenta e cinco anos de vida lúcida e pública. Apenas um ano e o câncer se espalhou por toda sua vida acumulada em rugas. Agora lhe resta as brigas pela herança bilionária.

Um espetáculo de cores que para o trânsito e muda o sentido das conversas. Breve, curto, longo sentir. Apenas um tremor de terra, quase tudo foi pelos ares. Via satélite, aos vivos todos os destroços em corpos dilacerados, se transformam em um espetáculo de imagens em escombros.

 Quase tudo fora do lugar e acontece um resgate pelo cochilo da morte. É o que é a morte em todos os lugares, uma vírgula para mais um complemento ao ponto final. Um espetacular cálculo estatístico que preocupa os órgãos de saúde, mas a preocupação é artificial.

As covas são valas rasas e pequenas para os milhares de mortos infantis por desnutrição transcontinental. Um espetáculo, assistido em propagandas de iogurtes, promoções de supermercados ou recordes de produção nas safras de grãos, vendidas como como commodities em bolsas de valores.

Um espetáculo em imagens para a hora do almoço e/ou do jantar e até para os jornais da meia noite. Uma morte que fica bonita e ganha vida própria, colorido, trilha sonora, visitas ilustres e cenas de choro e lenços. Populares e ilustres tecem curtos trechos de vã filosofia (vida/morte, ser/existir, desistir). 

A tristeza se reveste de pompa, os óculos pretos e modernos contrastam com as faces rubras de peles bem tratadas e propagandas de modelos internacionais estampadas em outdoors gigantes ou luzes de néon. 

A morte ganha todas as cenas, gera audiência, redimensiona a memória/imagem de passados que já estavam mortos. Os filtros das câmaras criam um ar acinzentado e mórbido trajeto aos territórios da morte.

Flores quase mortas avivam os entornos do espetáculo mortal. Uma princesa, um velocista, um bandido de colarinho branco, um índio Galdino, um mega star, um caminhão de sem terras no click de Sebastião Salgado ou mesmo um simples popular do corpo de bombeiros, que arriscava a vida para salvar vidas e eram todos filhos da morte com certeza.

Tons e sons de morte sobrevoam o local do cortejo. É uma pessoa ilustre, um chefe de Estado, era integro honesto e bravo. Álbuns de família são focados pela panorâmica das câmaras. Uma desatinada busca e alucinada espera, cortante e bruto alimento do pensar, desconstrução de destruição na construção de uma miragem. 

Um espetáculo mortal, monumental. Milhares foram soterrados pela truculência da natureza, em um simples tremor de terras. Cenas mundiais repetidas mais de uma vez pelos diversos canais, via satélite, aos vivos.

A tragédia é africana e europeia. Combina morte/rivalidade, guerras, alimento/fome e tragédias humanitárias. Um espetáculo mortal e louco de vacas loucas inocentemente sacrificadas aos milhares.

Tragédia euro africana de vacas e homens. Quantas vidas para cada morte. Uma morte, uma vida em uma cena espetacular que desencadeia todos os pensamentos que a lucidez consegue roubar da mente, em uma loucura combinada. 

Um viajar imaginário do ser ao penetrar da seda fina do subatômico momento do sábio nadar e no demasiado sendeiro do escuro de luz, nada encontrar pois o invisível é muito maior em todas as direções.

Uma endemia, epidemia e pandemia internacional toma conta do mundo e a morte se reveste de uma estatística bilionária, não são mais centenas ou milhares ao mesmo tempo, agora são registrados bilhões e em quase todos os lugares. Os desgovernos até ajudam a propagar essa calamidade mortal e usam esse espetáculo global como chamariz político.

Uma guerra, um massacre e um genocídio. Um povo exterminado e a morte não tem culpa dessa saga humana. Nestes casos são os próprios humanos usando a foice da morte ceifam seus semelhantes e sem piedade escolhem a morte como espetáculo para chamar a atenção do mundo e convencer a todos, através do medo que o terrorismo é o grande responsável pela morte em cadeia.

A vida em escombros, túneis escuros e desespero de mães e órfãos despedaçados de suas almas, quando morte é quase que totalmente inevitável, pois o espetáculo das grandes corporações armamentistas não pode parar.

----------

Textos e fragmentos de poesias do autor, publicação original na Revista Caos e no bolg essencialismo.sapo.pt//

Imagens das redes sociais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário