quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Kyianajê, Quem é Essa Mulher dos Meus Sonhos?

Por Belarmino Mariano*

Nesse meu sonho não tem um começo claro e nem um final definitivo, mas não consegui entender como cheguei ali, pois era um lugar conhecido e de retornos recorrentes, reencontros e regressos atemporais em terras próximas daqui, mas me dava s sensação de que eu vinha de outro mundo.

Eram pessoas que em minhas memórias conhecia, mas não tinha a dimensão de onde, quando e como. Coloquei nomes em quase todos e sabia que esse sonho era no Maranhão, lugar que só fui uma vez e lá passei uma semana. 

Nessa noite acordei, levantei da cama, fui ao banheiro, bebi água e voltei a dormir e a sonhar o mesmo sonho. 
Sabia que estava navegando pela bacia do rio Mearim (rio navegável), desde sua foz e subia o rio até seu afluente Pindaré (anzol pequeno) por um dia inteiro, conduzido por dois guerreiros em uma pequena embarcação artesanal.

Os nomes dos jovens eram Iberêanajê (rio do gavião) e Aimberé (forte e duro). Eles como filho do povo Pukobyê (Gavião-jê), carregavam consigo um arco-flecha de sua altura e usavam símbolos tribais ou pinturas em tons de roxo, azul, preto e vermelho, além de cocas feitos de cipó, tiras de cascas de árvores e penas de carcará e outros gaviões.

Quando chegámos à primeira povoação já era pôr-do-sol e a luz dourada contrastava com a água, mata fechada e montanhas distantes. Aquele cenário se repetia por todo o trajeto, mas a luz declinante do Sol dava uma beleza especial àquela chegada.

As crianças surpresas e alegres se aproximaram da pequena embarcação, enquanto os adultos em sua língua macro-jê, estabeleceram conversas incidentais de boas vindas e desembarcamos em um pequeno trapiche de troncos e árvores em estado bruto.

Ainda estava querendo entender quem eu era naquele território e naquela situação, aparentemente conhecida e com a sensação de já ter vivido aquilo outras centenas vezes.

Observei em meus trajes um tecido cru e muito amarrotado, como de uma época secular, além de pele de animais. Nos pés uma espécie de calçados de couro grosso e costurados a mão com tiras finas de couro. Os jovens que me conduziram estavam descalços e só cobriam as partes íntimas com couro de animal e tiras de couro.

Na aldeia em forma semi circular, uma das aberturas dava para a margem esquerda do rio Pindaré, em forma de lua, quarto crescente e já existiam umas três ou quatro fogueiras acesas e muita carne de caça, além de peixes, estavam sendo assados ou cozidos sobre umas pedras aquecidas e palhas de bananeira. Também notei batatas, inhame e farinha de mandioca em cuias. Também percebi castanhas e caldo de açaí.

Juro que estava com muita fome e meus olhos se alegravam com o que via, mas ainda não era o momento para degustação.

Fui levado ao ancião da tribo que em traje cerimonial me recebeu com sorriso e admiração. Eu percebi que já o conhecia e ele se levantou, passou a mão esquerda em minha cabeça e em meu rosto, como se me oferecesse uma proteção espiritual, enquanto falava com seus deuses em uma sonoridade e ritmada canção de boas vindas.

Eu observava tudo com calma e alegria no coração, sentamos em um tronco e ele conversava com os jovens que me acompanhavam e era como se eu estivesse entendendo tudo, mesmo sem dominar a língua Jê.

Enquanto isso, algumas crianças se aproximaram admiradas e me tocaram, como quem se aproximava de alguma coisa pouco comum.

Minha barba longa, grisalha e volumosa era o que mais lhe atraía. As mais afoitas tocaram meu rosto com suas pequenas mãos, alisando a barba impressionados, pois não era comum homens peludos e com olhos e cabelos castanhos claros.

Todos reunidos e o chefe ancião e sua mulher, fizeram um ritual aos antepassados, aos deuses e aos alimentos e fomos servidos com alegria. Ao redor da fogueira maior e em brasas, ouvia conversas incidentais e aquilo foi me despertando para Kyianajê (Kyi, cabeça de anajê, gavião).

Cabeça de Gavião era a mulher do meu sonho, minha esposa em mais de uma década. Mas não perdera contato com ela há uns três anos.

Em meu sonho sabia que não era de agora, foram vidas antigas, talvez seculares ou remotas e fui levado a uma missão para o Norte do rio Amazonas, nas terras francesas das Guianas, perdendo vínculo com aquele povo.
Voltar ao seio daquela nação era uma dádiva que não se explicava na lógica do tempo unidirecional, pois naquele momento, estava diante de uma singularidade e de volta a uns 300 anos, quando era navegador e garimpeiro francês em territórios do rio Mearim do Maranhão brasileiro.

O clarão da fogueira alimentada por mais lenha me despertou para entender que estava nas margens do rio Pindaré, nas terras ribeirinhas do povo
Pukobyê (Gavião) e seguiria até os Parkatêjê (tribo da floresta fechada), para finalmente encontrar os Kyikatêjê (tribo do monte), onde finalmente, iria encontrar Kyianajê e seus parentes Akrãtikatêjê, filhos das terras altas como eram conhecidos.

Enquanto eu sonhava em meu presente distante, dormi entre os Pukobyê. Em um sonho dentro de outro sonho, acordamos de madrugada e seguimos viagem, entre igarapés, igapó e por terra, em trilhas estreitas que encontravam a terra firme.

Andamos cerca de vinte quilômetros, mata a dentro, com subidas suaves e planícies encharcadas e arenosas. Nos alimentamos de carnes assadas na noite anterior, farinha e frutas encontradas no caminho até chegarmos às terras Parkatêjê.

Na povoação da floresta fomos recebidos com muita alegria, pois todos eram aparentados de minha Kyianajê e foi através dos Parkatêjê, quando procurava a terra das pedrinhas que conheci o povo Gavião da cabeça da serra.

Nos alimentamos e seguimos viagem pois a ideia era chegar em casa, ainda em claro e tinha uma subida para esse terceiro trajeto. Para o povo gavião cada despedida é um para sempre, mesmo que a gente volte amanhã. A Anciã nos abençoo na partida, pois o chefe estava caçando com outros guerreiros.

A viagem era um misto de paisagem selvagem, rios e riachos a atravessar, mas os jovens guerreiros conheciam bem aquelas veredas. Quando um novo pôr-do-sol já começava a deixar o céu laranja, ouvimos vozes distantes e gritos de kará-kará, como se as pessoas estivessem imitando pássaros.

Um grupo da aldeia do alto, estava à nossa espera com mantimentos, água e tochas para clarear o resto do caminho. Distantes a cerca de um quilômetro, mas devido a declividade do terreno e a Pedra Grande (Pedra do Gavião), que servia de clareira e ponto de observação, era possível ver e ouvir as vozes distantes, pois ecoavam na baixada.

O coração acelerou os batimentos e naquele momento, sentimentos de corpos e tempos distantes estavam prestes a se encontrar e, aos poucos, fui me aproximando de Kyianajê como se aquele sonho fosse real demais.

Ela com os cabelos negros, olhos negros redondos e uma pele cor de canela, com roupagem cobrindo suas partes íntimas, os seios a mostra, com cocar de pena de Gavião e Arara, e desenhos de geometria tribal, em preto e vermelho no rosto, além de urucum também nos lábios, era uma visão verdadeira do paraíso.

Ficamos em transe, paralisados e nossas carnes trêmulas se tocaram em um abraço demorado. Nos beijamos e nos olhamos como nas muitas vezes em que estivemos juntos. Na pedra do gavião o sol lançava suas últimas flechas de luz e uma metade dele já havia desaparecido na linha do horizonte, enquanto nossos olhares se encontravam naquela singularidade cósmica.

A alegria tomou conta de todos, suas irmãs e irmaos, primas, primos, guerreiros adultos e algumas crianças que acompanhavam o grupo. Naquele meio estavam nossos três filhos, entre 4 e 12 anos, dois meninos e uma menininha de braço. Abajê (gavião) e Thauan (argila vermelha), me abraçaram fortes e com alegria.

A pequena ecoema (filha da manhã), me olhava desconfiada sem querer aproximação, não quis sair dos braços de sua tia Eçaúna (Olhos Negros). Sabiamos que era uma questão de tempo, pois quando parti ela ainda não havia nascido.

Enquanto a noite escurecia, seguíamos pelas veredas estreitas, era uma caminhada lenta e com pequenas tochas varas verdes amarradas e resinas de plantas, servindo de transporte de brasas e chamas acesas.

Minha amada Kyianajê segurava em meu ombro e seguia um passo nas minhas costas, pois o caminho era estreito e perigoso, mas estávamos no mesmo ritmo e sintonia, como se as nossas energias estivessem se reconectando de imediato.

Ao caminharmos, ela me disse que Ecoema significava filha da manhã, pois havia nascido ao amanhecer e tinha os olhos castanhos claros como os meus. Na nossa frente Ecoema, se projetava para trás nos braços de Eçaúna e olhava para minha barba, olhos e cabelos com surpresa. Seus olhinhos claros brilhavam na luz dos senderos de folhas de açaí ao fogo e fui acordando em meio ao suor e lágrimas, pois não chegamos até a aldeia tão esperada, enquanto aquele pequeno rosto infantil me fitava , sem entender o que era aquele novo rosto e homem tão ligado a sua mãe.

Não queria que esse sonho acabasse assim, diante de uma antinomia e ausência de temporalidade. O mais estranho era saber que o tempo não acaba, nunca acaba, pois para tanto precisaria do selo da existência.

Mesmo que sejam fragmentos de um sonho, senti o colapso de algo que, mesmo não possuindo materialidade e, se resumindo a eventualidade de um sonho, dentro de outro sonho, fiquei chocado com um outro eu em pleno paradoxo do inexplicável.

Como poderia existir algo que não existe de maneira unidirecional e se o tempo se mede, como medir o tempo em sonhos ou ordenar causas e efeitos de sonhos, que parecem autônomos, dentro de nós?

Tive que inventar um tempo e um espaço juntos, pois em meu sonho o tempo e o espaço estavam separados. Será que nos sonhos o tempo se transforma em espaço? O tempo se funde com o espaço, ou o tempo é apenas uma sombra a se projetar no espaço?

Espero reencontrar as linhas ou fios dos novelos de Ariadne para continuar o quê, e até onde já sonhei, pois quero reencontrar a minha família, Kyianajê, minha filha Ecoema, meus filhos e aquele povo que me acolheu nestes fragmentos de sonhos tão lindos.
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Por Belarmino Mariano. Fragmentos de sonhos reais e invenção antropológica de lugar e seus povos.das as rea

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