terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Leveza Brutal de uma Borboleta

Por Belarmino Mariano.

Às dez horas de uma manhã de dezembro, seguia pela BR 230 rumo ao Agreste paraibano em minha motocicleta Fz 15. Por volta do km 67 e a mais de cem quilômetros por hora, meus pensamentos estavam todos tomados pelos 180 graus de veloz olhar geográfico da paisagem que se descortinava naquela manhã de céu azul que contrastava com os verdes canaviais e resquícios da mata-atlântica.

Na suavidade do instante e na leveza brutal dos acontecimentos uma borboleta multicolorida espatifou a sua liberdade contra o meu peito. Nas asas da minha liberdade de 150 cilindradas e a mais 100 por hora a leveza de uma borboleta partiu meu peito em pedaços e senti no peso do capacete que o mundo era sensível.
           
 Nesse momento o céu acinzentou e mortes cruéis tomaram conta dos meus pensamentos de velocista em duas rodas. Nas margens da BR, cadáveres de pequenas raposas, cães, gatos e até jumentos, eram banqueteados pelos urubus.

O céu acinzentado anunciava uma chuva que se aproximava faceira, trazida pelos alísios do sudeste e que com certeza lavaria meu casaco preto de couro sintético. Enquanto continuava a viagem senti um profundo frio na espinha dorsal e aquela fina chuva começou a cair.

Os pingos se lançavam contra o meu capacete e molhava todo aquele corpo signal de moto e homem em alta velocidade.

Sentia que as tinturas e fragmentos de asas da borboleta escorriam pelo blusão e se misturavam as pernas da calça jeans azul desbotada até tingir o negro asfalto com os fragmentos atômicos do que era uma liberdade multicolorida.

A liberdade era cercada em todas as suas propagandas de refrigerante, calças jeans, moto e placas de beba Coca-Cola. Nada mais possuía o mesmo sentido, pois minha frenética velocidade havia esbarrado no símbolo máximo da metamorfose ambulante.

A borboleta tatuada em meu corpo ganhava um sentido literal de Papillon butterfly acorrentada, pois de agora em diante minha borboleta estava presa a uma liberdade sem asas.

Por Belarmino Mariano (Micro Conto). Fotos do autor e redes sociais.

Os Poderes Especiais de Hanael

Por Belarmino Mariano.

Vítor Hanael, meu primogênito estava com apenas oito anos de idade e como uma criança curiosa disse que gostaria de ter muitos poderes. Como pai zeloso e sem lhe perguntar que tipos de poderes, fui logo interferindo e lhe apontando uma chuvarada de poderes que ele possuía.

Disse-lhe que podia: falar, andar, correr, chorar, amar, odiar, pensar, brincar, tocar, cheirar, ver, pegar, refletir, imaginar, sonhar, arquitetar, planejar e assim, fui lhe mostrando que os poderes que ele possuía eram tantos que tinha dificuldade para contar. 

Mas Vítor disse que isso não era o poder que ele estava querendo. Ele queria mesmo era poder lançar fogo pelas mãos, voar como as águias, passar por entre as paredes do tempo e viver em outros mundos. Naquele momento, percebi que meu filho estava vendo muita televisão e isso vinha lhe fascinando, lhe desconectando da realidade.

Percebi também que ficaria sem argumentos, pois o que ele tinha de mais natural para poder acessar o mundo do qual era parte, não considerava enquanto poder. Parecia algo natural demais para se conformar com o que tinha nas mãos, nos pés e no cérebro. 

Ele na verdade estava diante do grande sonho da humanidade em adquirir poderes especiais e em seu tempo de TV, internet e jogos eletrônicos, os poderes naturais eram insignificantes, diante das possibilidades atribuídas aos super-heróis de plantão.

Estava me sentindo ridículo diante de uma televisão cheia de poderes artificiais que mais pareciam sobrenaturais, interferindo para sempre na formação do único filho que havia gerado. 

Percebi naquele momento que trazia o poder da criação em minha gênese. Havia arquitetado em pleno gozo de minhas faculdades naturais um filho em toda a sua natureza.

Mas o grande problema da humanidade em possuir poderes sobrenaturais motivados pelas imagens do mundo midiático, agora instiga meu filhote. Poderes que foram e ainda são perseguidos pelos místicos, filósofos e teólogos, agora cintilavam em Vítor e nesse momento me veio á ideia de dizer que ele possuía poderes paranormais.

Lembrei que gostava de brincar com ele quando tinha apenas três anos de idade. A brincadeira parecia absurda, mas inventara um personagem engraçado que chamava de “o menino invisível”. Inventei uma voz e quando estávamos brincando o menino invisível entrava nas histórias e eles conversavam horas.

No início da criação desse personagem, Vítor tinha certo medo desse desconhecido menino invisível, mas com o tempo, foi se acostumando e sempre dialogava com aquela criancinha imaginária. O menino invisível tinha a mesma idade e as mesmas características físicas.

Ele possuía os mesmos brinquedos e também tinha seus pais invisíveis. Juntos inventávamos cenários perfeitos e ele adora ouvir aquelas histórias de um mundo em que não podiam ver aqueles personagens imaginários.

A partir daquela brincadeira de quatro anos atrás, disse para ele que poder conversar com o invisível era algo sobrenatural. Começamos a lembrar dos outros personagens que também misturamos as brincadeiras de vozes e histórias. 

Lembramos do “Velho Quiabo”, um velho maluco que adorava contar histórias do seu tempo de moço. Vítor adorava conversar com o velho invisível que saia da minha boca e expressões faciais. Com aquela velha voz de poeira, misturada com trovoada e palavreado de um analfabeto que inventa palavras.

Vítor lembrou de “H” uma criancinha invisível que tinha menos de um ano e que ainda não sabia nem falar, nem andar direito. Vítor tentava ensinar “H” a falar corretamente. 

Ríamos deitados em uma rede, com aqueles sons de vozes que ganhavam vida e significado.
Então disse para Vítor que só os paranormais ouviam as vozes do além, do invisível e do desconhecido. 

Disse que ele poderia ter esse poder e nos seus pré sentimentos poderia dialogar com o mundo dos sonhos e dos sons. Se ele treinasse mais, iria aumentar seu poder paranormal. Assim ele poderia treinar também a sua clarividência e a sua telepatia.

Vítor ficou fascinado com esta conversa e disse-me que quando parava de conversar com ele, que estava brincando sozinho, o menino invisível sempre vinha brincar e teve uma vez que ele chegou a ver seu vulto em um relance de imagens muito suaves em meio a uma fumaça invisível.

Sem perceber, vi que estava tratando com anormalidade um tema sem fronteiras, pois uma criança com apenas oito anos não seria capaz de entender sobre o sentido sensitivo e sobrenatural da vida. 

Mas lembrei em seguida que meu pai havia contado que chorou no ventre da mãe e isso lhe dava poderes para prever os acontecimentos e desvendar o mundo dos sonhos. Isso sempre me fascinou e me estimulou a escrever sobre meus sonhos 

Lembrei que minha mãe tinha muito cuidado com as crianças, pois dizia que elas ainda estavam com suas moleiras abertas e que era perigoso levar pancadas na cabeça e a moleira também estava aberta para entrada de forças que elas não dominavam. Isso tudo me levou ao mundo da infância, quando não entendia as forças do mundo.

Lembrei do fogo aceso no fim de tarde e das trovoadas assustadoras e também da grande lua que clareava o céu do sertão. Lembrei que adorava ficar rodando no meio do terreiro, até cair bêbado de tanto rodar. Via um mundo girando, girando, girando como em um carrossel de mim mesmo.

Via um mundo de nuvens esvoaçantes, de cercas de arame farpado que se misturavam com cercas de pés de avelós. Rodava tanto que caia no chão de terra batida, via o céu tocando em minha alma, via coisas acontecendo em minha cabeça como se fosse um transe primitivo de memórias ancestrais e nossos poderes especiais.

Por Belarmino Mariano, ( 20 de Janeiro de 2007. Autoretratos de Hanael).

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Acumulador de Pedaços de Canos e Troços Velhos

Por Belarmino Mariano.

Em papo de família, enquanto dirigia para o centro da cidade, aproveitei para reclamar com Luísa Mariano a filha adolescente, sobre organizar suas coisas, juntar seus troços e fazer uma ordem mínima das coisas. 

Disse que seu quarto era uma bagunça totalbe que  Anarquia era ordem. A desordem e o caos eram as únicas regras ali. Aleguei que parecia um vulcão em atividade e que, nos lugares onde a entropia se instala, o tempo para e a incerteza toma conta do universo.

Aí ela veio com essa frase que saiu da lata: "-espia quem fala, um acumular de pedaços de canos. Pensa que não vejo suas manias malucas de juntar troço velho!?"

A segunda parte da frase, "juntador de troço velho", bateu forte em minha caxola de sexagenário. Lembrei logo do meu pai, era um acumulador de coisas velhas e tinha a mania de costurar objetos quebrados. Costurava tudo, usava linha, fio de cobre, arame, nylon e o que fosse possível.

Nos dias atuais em que tudo é frágil e descartável, certamente, meu pai enlouqueceria tentando consertar os objetos feitos para quebrar.

A obsolescência programada é um absurdo, tudo está programado para quebrar bem antes do normal e as coisas caras pesam muito no orçamento.

Realmente ela tem toda razão, sou um acumulador de troço velho. Acho que tenho pedaços de canos em pvc de diferentes tamanhos, diâmetros e idades. 

Tenho uma estante grande com ferramentas, prego, parafuso, porca e coisas quebradas, ou restos de materiais, como pedaços de fios, torneiras quebradas, restos de tinta, buchas, etc.

Já observei uma coisa, a gente guarda essas porcarias por anos. 
Aí quando faz uma geral, joga ele troço velho fora, na semana seguinte, precisa, justamente daquela emenda, daquela junta do tampão da repimboca da parafuseta.

Por Belarmino Mariano, imagem das redes sociais.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Desencontros


Por Belarmino Mariano* 

Quando te vi pela primeira vez, parecia um sonho de tão perfeita e bela, mas não me belisquei, pois não queria acordar.

Você sorriu para mim como um flash que me seduzia tal qual a mariposa é atraída para a luz. Sorri de volta, enquanto meu coração brincava de bater tambor como criança traquina barulhando a alma.

Quando te vi pela segunda vez, aquela alegria em te encontrar borbulhou em minhas entranhas igual a água revoltada caindo de um abismo e se transformando em uma cortina de fumaça a flutuar no ar.

No terceiro dia sem te ver, já sentia sua falta sem nunca ter trocado uma única palavra com você. Era como se tivesse sido roubada metade do meu ser, pois você era minha grande interrogação.

Por dias a fio, perdi contato com teu doce olhar e com o teu sorriso malicioso e lindo. Tua pele juvenil e teus cabelos castanhos escuros brilhavam em minha mente e nem sabia em que labirintos te encontrar.

Já estava achando que você era apenas um sonho, sabe aquele sonho que você sonha com a pessoa sem nem conhecer ou saber nada dela. Mas existia o lugar e o grande problema era esse, te ver por duas vezes no mesmo local.

Quando nem esperava te encontrar na terceira vez que te vi, era um final de tarde e meu peito se encheu de uma alegria moleque e de um amor quase infantil. Ali tive coragem de me aproximar e, pela primeira vez, falar com você.

Lembro de dizer meu nome e de perguntar o seu. Confesso que deu um friozinho na barriga e aquela sensação de estar em uma roda gigante de emoções. Meu olhar se fixava em teus lábios e em teus olhos e te desejei como uma grávida desejando comer manga rosa querendo amadurecer.

Agora tinha rotas, mapas e novelos para te encontrar, o que parecia um sonho, ganhou contornos de realidade, mas a partir daí, passei a me beliscar com frequência.

Naqueles dias em que estava começando a te conhecer, notei que você havia colocado mais alegria em minha vida. Te encontrar e continuar te encontrando era o que eu mais queria.

Depois de incontáveis encontros e desencontros, intermináveis tardes de pôr do sol, de nos deitarmos e rolamos na grama como cães adolescentes que brincam de morder, ou na beira mar ao anoitecer com o barulho das ondas e a cidade acendendo as luzes, enquanto pequenas estrelas pintavam o céu, você desapareceu de minha vida.

Não lembro de despedidas, ou faço questão de não lembrar. Lembro que passei uma semana ouvindo músicas tristes e não querendo deixar de sonhar.

Nunca te esqueci e confesso que com você, aprendi literalmente o que é um amor platônico, melhorei minha filosofia niilista e o amor pelo nada, pois vazios nunca mais seriam preenchidos e só o acaso dava conta em nos desencontrar.

Sem você por perto compreendi que não existe porto seguro e ilusões são bem mais comuns que os contatos de fadas e histórias encantadas.

Te perder de vista foi não mais me encontrar por inteiro. Você nunca me viu chorar, você não conhece esse meu lado frágil, mas quero que saiba de minha boca, homens são tão frágeis quanto cristais pendentes em lustres de mansões abandonas.
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Por Belarmino Mariano. Imagem das redes sociais.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

O Auto da Compadecida 2


Por Belarmino Mariano*

Não sei quem vai deixar para depois, mas fui logo hoje, 25 de dezembro feriado do dia de Natal. E agora que assisti o filme, entendi a escolha dessa data especial para os cristãos.

Não sei qual será a posição da crítica, não sou crítico de cinema e se fosse seria um suspeito duplo, por ser Nordestino e daqueles apaixonados por Ariano Suassuna e por cuscuz.

Nem vou esperar que vocês se dirijam ao cinema mais próximo, pois não quero esquecer de detalhes importantes do filme. Nas minhas primeiras impressões, fiquei curioso em saber o que Ariano acharia da reinterpretação de sua obra. 

Eu adorei e já digo de cara, acho que Ariano iria delirar, pois a capacidade humana em fazer arte é descomunal, e não queiram comparar o 1 com o 2, pois são coisas completamente diferentes, sobre a mesma coisa.

O texto é fenomenal, e vi minha mãe em várias passagens e dizeres, com expressões que só as mães e avós nordestinas sabem dizer. 

O texto retrata o nordestino em sua melhor caricatura de João Grilo e Chicó, coisas que a literatura conta e que os diretores, tiveram a sensibilidade de expressar com riqueza de detalhes.

Um texto crítico e político engajado, com humor e acidez em que a política oligárquica ainda é a tônica do nosso país e região, como era há um século atrás.

A educação formal, a oralidade e o analfabetismo são novas tônicas e o texto é uma crítica religiosa, sem ser um ataque à fé das pessoas, pois fé é algo superior a crenças e autoridades religiosas que se aproveitam da fé popular.

A ambiguidade dual entre o bem e o mal ou deus e o diabo retratado na mesma persona, além da ideia de fêmea e macho quase que indefinidos pelo detalhe caprichoso em que o ator ou a atriz, podem ser realmente o que quiserem.

A fotografia do filme é fascinante e nos faz mergulhar em um passado da juventude literária de Ariano, com riquezas de detalhes que só vemos no teatro e na complexa cenografia de artistas da pintura expressionista.

As imagens "pós-expressionistas, de um figurativo hiper realista fantástico", nos prende do começo ao fim, ao que de fato é, assim como o sonho das cidades do interior.
Cara,  eu andei de Marinete e quando adolescente vi a riqueza imagética das décadas de 1960/70. O filme mostra as cristalizações desses lugares como o teatro faz em seus ricos cenários.

Minha mãe nasceu em Cabaceiras/PB e se a gente for lá hoje, ou em Taperoá e Coxixola ou outras "paisagens do interior", vai conseguir ver todos os traços da plástica urbana e semiárida retratada no filme.

O desenho animado das imagens me lembrou o cinema iraniano, se misturando com o cinema indiano e coisas de Glauber Rocha na "invenção do cinema nordestino e brasileiro" das décadas de 1960/70.

Os artistas de animes, os desenhistas do realismo fantástico irão se deliciar com a plástica imagética do filme. E fiquei refletindo como conseguiram desenhar tudo isso com câmeras? Não vamos achar que tudo seja Inteligência Artificial, pois não é, e se for, que IA realista e original!!!

A trilha sonora é de arrepiar, que escolhas fenomenais de Bethânia a Chico César e para fechar o vozeirão de João Gomes. É por isso que me sinto mais suspeito do que crítico imparcial. Essa galera da música é realmente fantástica.

Sobre o elenco, com os novos atores e atrizes, sem citar nomes, achei sensacional. "Muito bom véi!", surpreende mesmo. Como já adoro o 1, posso dizer também que adorei o 2 e olha que foi apenas a primeira vez. 

Espero não influenciar ninguém, até porque não falei de nenhuma cena, situação ou roteiro do filme. O fato de ter gostado, quero dizer, adorado, não significa nada, pois só sei que foi assim.

*Por Belarmino Mariano. Imagem que alguém fez do meu celular.

domingo, 22 de dezembro de 2024

As Pitangas Maduras São Vermelhas

Por Belarmino Mariano*

Não sei se Camila gostava de Pitanga, mas eu adoro. Tanto é que, na porta da minha casa plantei uma pitangueira (Eugenia uniflora). As chuvas de dezembro já estão dando resultados, olhem essa safra!

Como as crianças de hoje em dia evitam sabores agridoce e ácidos. Os frutos amadurecem no pé. Delicia para os passarinhos e para mim, um grande apreciador dessas pequenas delícias.

Pitangas maduras, que em Tupí-guaraní significa vermelho forte. É um arbusto endêmico do Brasil tropical e muito comum no Nordeste e em área litorânea de restinga e mata atlântica.

A pitanga é uma verdadeira explosão de cores em metamorfose. Entre o final da primavera e início do verão (outubro a dezembro), com as chuvas tropicais, sua floração começa toda branquinha como véu.

Em menos de uma semana os pequenos frutos estrelados são verdinhos e pequenos. Em 9 dias já estão crescidos ao tamanho da cabeça de um dedo humano e começam a madurar, mudando de verde para amarelo e em seguida cor laranja até atingir o vermelho claro e depois escuro.

Quando a pitanga começa a ficar alaranjada, entre dois ou três dias de sol, se percebe a metamorfose e a pitangueira estará bem colorida, com flores brancas ainda desabrochando, alguns frutos verdes, outros amarelos, alaranjados e em seu ápice, começam a se avermelhar por todos os pequenos galhos.

Quando bem vermelhas, quase cor de jambo, estão no ponto para colher e chupar. O sabor ácido adocicado bem suculenta, lembra sabor de pétalas e tem cheiro suave inconfundível.

Segundo pesquisas da Embrapa a pitanga é nutritiva, rica em vitaminas e tem função terapêutica. Nos dias atuais, devido ao seu baixo potencial calórico pode ser uma ótima dica de emagrecimento. 

Rica em vitamina C é antioxidante, pode ajudar na proteção da pele, deixando macia, bonita e saudável. Seu sabor é para paladares exigentes e que gostam de sabores únicos e a dica é consumir a pitanga bem vermelha.

Simplesmente colher a pitanga e comer ao natural, mas na culinária pode se transformar no licor dos licores, doces e geleias para acompanhar com torradas, sucos, sorvetes e picolés de pitanga são sabores únicos e inesquecíveis aos paladares apurados.

As suas folhas servem como antiinflamatório, podendo ser mascadas ou em chás, servem para infecção intestinal, cólica ou dores de barriga. O chá da folha de pitanga também é indicado como calmante, combatendo insônia, ansiedade e até inflamação da garganta, gastrite e bronquites leves.

Soube de uma amiga que é uma das frutas que estão incorporadas ao Candomblé e aparece como vinculada a Exu, Oxóssi e Oxum, orixás vinculados a justiça, lealdade, beleza e proteção das matas e animais.

Para os amigos que gostam de uma boa cachaça, a gente lembra logo de limão, caju ou acerola, mas a pitanga é uma das vermelhinhas apreciadas pelos cachaceiros de plantão.

Por Belarmino Mariano. Imagem do autor.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A Morte Veste Branco e Anda Descalça


Por Belarmino Mariano*

A Morte Veste Branco e Anda Descalça. A morte é um fato incontestável e a vida uma incógnita imprevisível. A morte não usa foice e nem jóias, ela só é o que é e ponto final. 

Murmúrios e alaridos das perdas são normais e o ritual fúnebre é uma experiência cultural que precisa ser experienciada e respeitada.

O luto que no ocidente se veste de preto e no oriente se veste de branco, são como o yin yang da filosofia taoísta, um busca de equilíbrio dos contrários, mas a vida e a morte, aparentes opostos, são na verdade complementos da nossa existência.

Sempre estive ligado à ideia de que a vida é imprevisível, nunca fui muito fiel aos valores, princípios e dogmas religiosos, pois para cada povo, sociedade e civilização, deuses, religiões e rituais, são muitos e variados.

Sempre gostei de filosofias sobre espiritualidade e metafísica, pois nos conectam com fenômenos inexplicáveis, mas quando se transformam em explicações ilusórias, como se fossem reais, viram mito, dogma e ritual que só fazem sentido na psicose humana dos envolvidos.

Essa ideia de ciclo, passagem, recomeço é forte em todas as tradições, mas no ocidente a morte nunca é aceita, sempre é negada e alguns acham que não serão tocados pela mão invisível da morte.

Os impactos da morte na vida de muitas pessoas que continuam vivas são avassaladores, deixando alguns completamente desnorteados e em fragmentos, como vasos em pedaços que se estilhaçam com a queda.

Porém, não tenham medo, pois, como afirmou Augusto dos Anjos, a morte é nossa companheira inseparável, a nossa certeza incontestável e nem precisa relutar, pois com ela nos encontraremos, cedo ou tarde.

Por Belarmino Mariano. Imagem das redes sociais.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Lugar Nenhum em Fragmentos de Sonho.

Por Belarmino Mariano*

Nem sei como começar, mas notei que era uma mala velha e surrada pela poeira e viagens distantes. Era uma mala de séculos, feita com finos fios de madeira e encapada de couro de gado em completa rusticidade artesanal.

Que lugar era aquele, marcado pela escuridão de uma casa antiga? Uma história mal contada e não fazia sentido para os dias de hoje, pois não encontrava ecos do presente.

O véu do tempo me fez viajar por um mundo distante e tenebroso. Não cheguei a abrir a mala, pois fui arrebatado por uma onda de choque, jogado contra as paredes e no fogareiro acesso, uma adaga sobre um balcão de taberna, indicava sangue, uma batalha e corpos estendidos pelo chão.

Naquele mesmo momento, sinais de colera e sentimentos de pânico me tomaram as entranhas do corpo. Quando saí daquele ambiente fúnebre, ainda era escuridão total e tinha consciência de que havia chegado ao lugar errado e em hora errada também, pois ninguém mais, em viva alma, estava lá.

A questão era, como fui parar ali, como cheguei naquele lugar e porque em uma casa escura, fria, tenebrosa e com cheiro de sangue no ar? Consegui me desgarrar dos medos e sai pela porta entreaberta que dava acesso a rua.

Lá fora não era diferente, a sensação de perdas, aquele momento era único e estava vivendo pela primeira e última vez. Não havia referência a lugar nenhum e perdi a noção de tempo espaço.

Enquanto perambulava pela rua deserta e escura, cruzei uma ponte de madeira e pedras, naquele instante notei que estava me afastando do povoado urbano, até que notei um branco neve pelos arboredos e percebi que eram reflexos da luz vinda da Lua.

Andei mais depressa que o normal e aquele clarão distante me despertou do pesadelo insuportável. Acordei atordoado e o pior do sonho foi acordar sem nenhuma referência de tempo espaço, mas apenas a certeza de que era eu que estava ali.

Como se ao acordar, tivesse deixado para trás uma mala velha cheia de coisas que não sei o que eram. Acordei com um sentimento de perdas na memória, um gosto de ferrugem na boca e o peso de uma viagem astral inconsciente.

Por Belarmino Mariano. Fotografia de Luisa Mariano .

domingo, 15 de dezembro de 2024

Os Nazcas Palpas: Uma Civilização Que Falou Através da Terra


Por Bruce Jay*

Os Nazcas, uma civilização pré-inca que floresceu na costa sul do Peru entre 200 a.C. e 700 d.C., deixaram para trás um legado fascinante que continua a intrigar arqueólogos e estudiosos até hoje. Seu maior mistério está nas linhas enigmáticas e geoglifos que eles gravaram no deserto, formando um vasto mapa de formas geométricas, animais e plantas que se estendem por centenas de quilômetros.

Legado Esculpido na Areia

As linhas de Nazca, como são conhecidas, são um conjunto de geoglifos, figuras gigantescas gravadas na superfície do deserto. Acredita-se que os Nazcas as criaram raspando a camada superior escura do deserto, revelando a areia mais clara abaixo. Essas linhas se estendem por mais de 800 quilômetros quadrados, formando um labirinto complexo de formas geométricas, animais como macacos, pássaros, aranhas, peixes e plantas. Algumas das figuras mais famosas incluem um beija-flor, uma aranha, um macaco e um peixe.

Um enigma não resolvido

O propósito das linhas de Nazca continua sendo um mistério. Várias teorias foram propostas, desde serem um calendário astronômico até representar um mapa regional ou servir a um ritual religioso. Alguns pesquisadores acreditam que as linhas eram usadas como um caminho para cerimônias ou procissões, enquanto outros sugerem que eram uma forma de comunicação com os deuses. A teoria mais amplamente aceita é que as linhas de Nazca estavam relacionadas a rituais religiosos e astronômicos, pois muitas das figuras parecem estar alinhadas com o sol e as estrelas.

Testamento da cultura de Nazca

As linhas de Nazca são um testamento da cultura de Nazca, uma civilização que desenvolveu um sistema de irrigação complexo, cerâmicas excepcionais e uma rica tradição têxtil. Sua arte, refletida em seus geoglifos, demonstra seu conhecimento de astronomia, geometria e simbolismo.

Linhas Palpa, Sul do Peru 
Localizado nas Pampas de Palpa; região que faz fronteira com a província de Nazca, na zona costeira do sul do Peru.

Embora não sejam tão famosas quanto as Linhas de Nazca, as próximas de Palpa são talvez igualmente intrigantes e provavelmente maiores.
Existem mais de 1600 Linhas Palpa e Geoglifos que costumam contar com figuras humanas ou criaturas.
Geralmente acredita-se que eles são feitos pela cultura Paracas, que durou desde c. 800 A.C. a 1 d.C.
As Linhas Palpa foram criadas nas encostas das montanhas e são possíveis ver das aldeias ao sopé das montanhas.

*Créditos: Bruce Jay e Curioverso.

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sábado, 14 de dezembro de 2024

O MENDIGO.


Por Yoskhaz*

Eu estava no mosteiro para mais um ciclo de estudos. Tinha sido uma noite difícil. Uma avalanche de pensamentos me furtara o sono. Ninguém consegue dormir se dentro de casa impera o barulho, a bagunça e a desordem. Cada um mora em si mesmo.

Eram muitas vozes falando de maldades, abusos e rejeições sofridas. Quando acontece, o caos se espraia pelos cômodos. Desconfortável, você sai de casa. Desconecta-se da sua essência para viver à margem de quem você é. Perde o rumo e a identidade. Torna-se inseguro, os movimentos ficam vacilantes, por vezes, impetuosos. 

São sintomas comuns às dificuldades de elaborar as dores emocionais. Em diferentes graus, todos enfrentam esse desafio existencial. Sem exceção. Ninguém gosta de se sentir assim, muito menos que percebam o desequilíbrio pelo qual atravessamos.

É comum fazermos um enorme esforço para transmitir a todos uma imagem de equilíbrio e força. Contudo, de nada adianta encenar uma falsa tranquilidade enquanto a agonia e o sofrimento deitam raízes no coração. Apenas adiamos a resolução do problema. 

A aparência, por mais bela que seja, jamais terá o poder de transformar a essência. Não iremos a lugar nenhum. Não há como apagar esse incêndio sem chegar num lugar difícil, porém, lindo; delicado, porém, poderoso: o âmago do ser. 

Instado por essas ideias, desisti de continuar na cama. Eu precisava pensar sobre os sentimentos que me moviam e, tão importante quanto, para onde eles me conduziam. Do contrário, permaneceria distante de quem eu precisava encontrar: a mim mesmo.

Levantei-me com o céu ainda estrelado. Fui à cantina, fiz um pouco de café, enchi uma caneca e me sentei próximo às janelas com vista para as montanhas. Havia silêncio e quietude. Uma maravilhosa vibração de paz era a tônica constante do mosteiro, um lugar bastante agradável de estar. 

Algumas das pessoas que me eram mais valiosas estavam ali. Apesar das condições externas serem perfeitas ao bem-estar, nem toda aquela paz era capaz de encerrar o tiroteio do meu coração em guerra. 

Depois de anos e anos de estudos, pilhas de livros lidos, inúmeros cursos e palestras, incontáveis horas de oração e meditação, eu ainda era escravo das minhas emoções indomáveis e desvairadas. Era preciso compreender o que eu ainda não fora capaz de entender. O mais grave é que eu nem sabia por onde começar.

“Comece por onde doí. O rasgo da ferida é perfeito para deixar a luz entrar”, fui surpreendido pelo Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Ele entrara na cantina sem que eu o notasse. Encheu uma caneca de café e se sentou à mesa comigo. 

Perguntei sobre a que se referia. Respondeu-me: “Falo das incompreensões que o arrancam do seu eixo de luz. Sem o devido entendimento desperdiçará o mel da vida. Não conhecerá a paz nem a felicidade. Viverá amores esgarçados. A liberdade se manterá impossível enquanto permanecer refém do comportamento alheio. Não menos importante, sem se dar conta, aos poucos, perderá a dignidade em escolhas desorientadas e atitudes permissivas”. 

Antes que eu pudesse dizer algo, ele complementou: “Quando a voz cala a dor, os olhos suplicam ajuda”. Bebeu um gole de café e, com seu modo simples e sincero, me ofereceu acolhimento: “Estou aqui”.

Não consegui conter a lágrima rebelde que revelou o teor dos sentimentos e se antecipou as minhas palavras. Eu precisava falar e o Velho estava disposto a me ouvir. 

Sem julgamento nem censura. Falei por um tempo que não sei precisar. Contei sobre o histórico de rejeição familiar que eu vivia desde a adolescência. Não é fácil nem simples crescer em uma família sem se sentir acolhido e compreendido em suas necessidades emocionais. 

À medida que me tornei adulto, nada mudou. Assistia como todos se importavam com todos, se procuravam, confraternizavam. Muitas vezes deixei de ser convidado para aniversários, encontros, casamentos, festas de Natal e Ano Novo. 

Não era apenas uma questão de convites. As críticas eram ferozes. Até quando eu acertava, para eles, havia um erro. Falavam que o bem praticado tinha sido motivado por vaidade ou culpa. 

Viver no seio de uma família sem fazer parte dela era doloroso. Mais ainda, quando tentava conversar com essas pessoas para entender sobre o motivo da aspereza, elas negavam. Diziam me amar. Momento seguinte, me descartavam. Era quase uma tortura. Vivenciei constantes picuinhas e agressividades veladas. Maus-tratos.

Citei inúmeros episódios ainda vivos na memória, mesmo depois de muitas décadas. Mesmo assim eu não desistira de fazer parte da família e me sentir amado por eles. Eu desejava que um dia o meu valor fosse reconhecido. Ao final, o Velho me questionou: “Por que você insiste em se desrespeitar?”. Falei que era necessário oferecer a outra face todas as vezes que nos agrediam. Oferecer a outra face, em melhor interpretação, é mostrar os encantos da luz a quem vive na escuridão. 

O bom monge balançou a cabeça e pontuou: “Um conceito certo aplicado ao caso errado. Não há nenhuma luz quando nos deixamos ferir para não desagradar os outros. Não devolver o mal com o mal é ato luminoso. Estabelecer limites para cessar abusos, também. Jamais permita que nada nem ninguém o destrua. Deixar-se destruir é como se abandonar nos becos sombrios de um sofrimento sem fim”.

Franziu as sobrancelhas e pontuou com seriedade: “Existe uma importante diferença entre persistir e insistir. Persistir é não desistir de um caminho apesar dos obstáculos que se apresentam. Insistir é teimar em prosseguir em um caminho sem saída. Cabe a cada um adequar a teoria ao caso concreto”. Em seguida, me desconcertou: “Você está fragmentado entre o sofrimento da rejeição e a dor do crescimento”. Fez uma pausa para ressaltar: “Sim, crescer dói, causa medo, raiva e culpa. Mas é fundamental à evolução. Trocamos a sensação de abandono pelo sentimento de amor-próprio. Aprendemos a nos cuidar, a entender o que é melhor para a gente e adquirimos prazer em vivenciar a nossa própria reconstrução. É maravilhoso!”.

Questionei o motivo pelo qual resistíamos tanto em levar a termo uma transformação tão necessária. O Velho explicou: “A rejeição é um sofrimento conhecido de longa data. Você acredita já ter se acostumado ou que saiba lidar com ele. Por isto, prefere deixar como está a ter de enfrentar a dor desconhecida do crescimento. Não é simples ir a um lugar onde nunca esteve tanto dentro como fora de si mesmo. Isto assusta. Nem sempre é fácil impor limites a quem se acostumou a nos tratar sem nenhum respeito. Terá de contrariar pessoas que acredita amar, negando vontades e desejos a que se habituaram, mas que ferem a sua consciência ou o deixam desconfortável. Como ensina uma alquimista contemporânea, dizer não a pessoas que pretendem que diga sim – e defender os seus limites com pessoas que estão acostumadas a que não tenha nenhum – vai provocar uma sensação horrível de morte. E é uma espécie de morte: a morte daquela parte de si que pensa que precisa ser desrespeitada para ser amada”. 

Eu não compreendia a razão de uma transformação tão benéfica gerar dor, medo, raiva ou culpa. Acreditava que ao caminhar rumo à evolução seríamos tomados apenas por sentimentos bons. O bom monge esclareceu: “Para chegar aos sentimentos bons será preciso enfrentar e ultrapassar os sentimentos ruins. Não apenas isto. Terá também de aprender a interpretar os novos sentimentos. Afinal, você ainda os desconhece”. 

Pedi para que explicasse melhor. O Velho foi didático: “De início, será doloroso perceber que muitas pessoas queridas não mudarão de comportamento, mesmo quando lhes disser que o modo como se relacionam contigo o faz sofrer. Terá de aceitar que, por serem insensíveis ao teor nocivo das próprias atitudes, precisará se afastar delas. Terá de encerrar ciclos com quem acreditava que estaria ao lado até o dia do dia sem fim. Contudo, a dor da perda não pode furtar a alegria dos inquestionáveis benefícios que virão com as mudanças. Então, em melhor análise, entenderá não se tratar nem de uma dor nem de uma perda, mas de um sentimento de perplexidade, aprendizado e transformação por estar transitando em uma estrada nunca percorrida”. 

Bebeu um gole de café e continuou: “Podemos sentir medo ao pensar como as pessoas reagirão aos limites que passaremos a impor. Ficaremos receosos se entenderão e apoiarão a nossa nova versão. Se saberemos lidar com a solidão até encontrarmos quem nos ame e admire por ser quem verdadeiramente somos. É como retornar à escola para reaprender a ser e viver de um jeito diferente e melhor. O medo de curto prazo não pode impedir a liberdade de longa duração. Toda quebra de padrão traz uma sensação de insegurança. Se pensar bem, essa sensação é fictícia e desprovida de valor. Nada há de ruim em deixar ir o que não nos faz bem. Em verdade, esses novos sentimentos são sinais de uma transformação que se anuncia”. 

Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Será comum se, num primeiro momento, nos sentirmos culpados por negar os desejos daqueles que sempre atendemos. Nos sentiremos egoístas pelo simples fato de respeitar, valorizar e cuidar do nosso próprio bem-estar. Afinal, são atitudes que, além de novas, geram prazer. Uma vez que o sofrimento nos fez companhia por longo tempo, ainda que absurdo, duvidaremos do nosso direito à felicidade. Absurdo também será, e não se espante que aconteça, ficarmos mal ao impedir a entrada de quem sempre se portou como se o nosso coração fosse um bordel ou parque de diversão. São sentimentos novos decorrentes de um comportamento novo. Mais maduro e evoluído. Não hesite, nenhuma correlação existe entre autoestima e egoísmo. O amor-próprio é pressuposto indispensável para amar mais e melhor a todos. Sem aquele, este será impossível”. 

Em seguida, explicou: “Sentiremos raiva ao perceber que muitas pessoas só se interessavam pelas vantagens que usufruíam no modelo de relacionamento abusivo que mantinham conosco, sem nutrir qualquer afeto ou interesse pelas nossas necessidades. Sentiremos raiva por ter deixado que nos maltratassem, seja por termos demorado a compreender a importância do autorrespeito, seja por não termos tido coragem para impor os devidos limites. Porém, com a mudança de postura, descobriremos o prazer pela liberdade desconhecida, assim como por encontrar a identidade perdida. Então, a surrada mágoa que imperava no coração será substituída pela transbordante alegria de quem aprendeu a se apaixonar por si mesmo. Isto não é vaidade, é autoestima. Primordial à plenitude”. 

Bebericou mais um gole de café antes de concluir: “Se mesmo assim restar qualquer dúvida, lembre que não há a menor possibilidade de aperfeiçoar um relacionamento alimentando um comportamento errado ou enfermiço. Um bom exercício é se distanciar dos densos sentimentos à flor da pele, observando a si mesmo como um espectador, como modo de obter um panorama geral da triste situação atual, assim como de todas as conquistas a sua disposição caso aceite o desafio da redenção: a liberdade através da própria reconstrução. Quando entendemos a grandeza das possibilidades, o movimento se torna inevitável”.

Comentei que essa mudança de comportamento me faria enfrentar muitas dificuldades e inevitáveis problemas. Eu não acreditava que ninguém mudasse o comportamento apenas para me agradar. Até porque já tinham se mostrado insensíveis aos meus sentimentos. O Velho concordou com a cabeça e me lembrou: “O esforço para mudar quem está confortável onde sempre morou é exercício dos tolos. Somos nós que temos de construir um lugar bom e seguro para viver, sem jamais depender que alguém nos coloque onde merecemos estar. Não podemos permitir que baguncem ou destruam a nossa casa por achar indelicado fechar a porta para baderneiros e malfeitores. Não esqueça que cada um vive dentro de si mesmo”. 

Bebeu um gole de café antes de continuar: “Caso queira se libertar do sofrimento, terá de aprender a se defender. Tanto dos seus próprios sentimentos, conforme falamos há pouco, como daquelas pessoas que se acostumaram com a sua permissividade. Muitos deles reagirão mal diante das inesperadas contrariedades. As experiências evolutivas não existem para serem fáceis, mas para valer a pena. Ninguém é obrigado a abrir caminhos dentro de si para que possa crescer e avançar pela vida. Entretanto, ao negar esse movimento, sem importar o fluxo da sua conta bancária, seguirá no papel de mendigo existencial, a se alimentar de esmolas afetivas ou se contentar com migalhas de amor que sobrou no prato dos outros. A maior das misérias é negar a si mesmo o melhor do amor que existe em si mesmo. O amor não sobrevive à falta de respeito. A mendicância por restos de afetos e resíduos de atenção é causa de sofrimentos amargos e profundos. Manter-se nesse lugar é uma escolha. Sair dele é também uma escolha. Ambas estão à disposição de todos. Amar-se para se fazer genuinamente amado é fórmula comprovada de bem-estar, alegria e felicidade. Entretanto, somente conseguiremos nos sentir amados por ser quem somos após suprimir toda e qualquer dependência por aceitação, pertencimento ou validação. A dependência emocional causa uma deformação desnecessária por fazer adotar características estranhas a própria identidade. Deixamo-nos usar e manipular para estar ao gosto de quem nunca nos amou. Personagens e fantoches servem apenas ao prazer alheio, sem qualquer nesga de afeto, respeito ou admiração. O amor é avesso a comportamentos assim. Somente o poder da singularidade e da autenticidade de uma pessoa, por toda beleza e encanto únicos que possui, faz abandonar o falso brilho da insegurança para dar lugar à luz da firmeza e da verdade”. 

O Velho se levantou e se dirigiu ao armário da cantina. Cortou duas fatias generosas de bolo de milho, as colocou em pratos e trouxe à mesa. Fez um gesto para que eu me servisse em silêncio. Era momento de refletir sobre o conteúdo da conversa que tivéramos. O aprendizado só se completa quando aplicado à prática. O conhecimento só faz sentido se gerar transformação. Todo sofrimento é sintoma de experiências mal elaboradas. A vida as repetirá até que se tornem desnecessárias. Eu precisava me curar. Mas sabia que o elixir sugerido pelo bom monge podia provocar efeitos colaterais. Comentei isto com ele. O Velho arqueou os lábios em sorriso, como se já esperasse por esse questionamento, e ponderou: “Haverá momentos de dúvidas e insegurança. Algo natural para quem vive a jornada de quebrar padrões de comportamentos que o acompanham desde sempre. Haverá uma ruptura. Aquele que você foi durante muitos anos deixará de existir para dar lugar a uma versão diferente de si mesmo. Antigas práticas serão encerradas para sempre. Assistirá uma parte de quem você sempre foi indo embora. Terá de aprender e se acostumar a viver com a nova postura que escolheu para se posicionar diante de si e perante o mundo. Uma transição nem sempre compreendida por inteiro de imediato. É natural que precise fazer ajustes durante o processo. O fator mais importante é nunca esquecer que o genuíno respeito dialoga com a serenidade, a clareza e a honestidade. É manso e firme a um só tempo. Estabeleça limites sem agressividade ou revide de qualquer tipo e espécie. O respeito é um movimento interno que se expressa sem pedir licença nem necessita aguardar por autorização de ninguém. É o eixo central da dignidade. Não podemos exigir que nos respeitem, mas tem de haver um compromisso definitivo de jamais abdicar dele no trato consigo mesmo. O amor-próprio e o autorrespeito compõem o arcabouço da consciência que nos ilumina os passos”.

Esvaziou o café da xícara e concluiu: “No começo, haverá momentos de incerteza quanto as novas decisões. Muitos se dirão decepcionados e se afastarão ao ver negado os pedidos que sempre foram atendidos. Eram pessoas a quem serviu sem impor limites para não as desagradar. Você queria ser compreendido e amado por elas. Não se surpreenda nem tenha medo. As transformações evolutivas são luminosas. Um dos seus efeitos é a capacidade de clarear tudo ao redor. As diferenças entre o bem e o mal se tornam nítidas. Separar o certo do errado fica mais simples. Nem todo grão é semente. Quem nos ama sempre se esforçará para nos compreender sem exigir nenhuma contrapartida em troca. O amor não cobra preço. Desagradar-se para agradar os outros é movimento de desamor”. 

Fez uma pausa antes de acrescentar: “Confie na sua narrativa e olhar, nas suas virtudes e verdades. Perdoe e se perdoe. E siga sem medo”. Bateu com o dedo indicador na mesa para ressaltar as palavras seguintes: “Lembre-se que o não, até então nunca dito a pessoas que sempre tiveram suas solicitações atendidas, significará um sim revolucionário para você. O amor e o respeito negligenciados durante tanto tempo, finalmente será resgatado. Esse movimento é parte da arte que cabe à liberdade. Os cárceres emocionais, por suas grades nem sempre visíveis, terminam por impor penas longas e cruéis.”

Em seguida, finalizou: “Despir-se do mendigo afetivo que interpretou em suas relações por causa da enorme carência emocional que sempre sentiu, mesmo sem lhe negar todos os motivos e razões, será fundamental para assumir o controle das suas necessidades e verdades. Do contrário, jamais conhecerá o genuíno amor”. 

O dia amanhecia. Alguns monges chegavam para o desjejum. O Velho disse precisar se preparar para a palestra daquela tarde. Despediu-se e saiu com os seus passos lentos, porém, seguros. Não sem antes fazer um gesto como quem diz que o poder da cura estava nas minhas mãos. Cabia a mim aproveitar. 
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