sábado, 10 de maio de 2025

Tomando um café, fui atravessado pelo sútil despertar de Helena

Por Belarmino Mariano.

Quase nada do mundo é real, às vezes preferimos as ilusões e fantasias, não importa se materiais ou se puras construções mentais. Mas ela estava ali, na porta da panificadora, com um maço de cigarros em uma das mãos e a outra mão curvada sobre a lateral do seu tronco, em nítido esforço para se manter em pé.

Helena, em seus trajes simples, de uma mulher de rua, trapos encardidos e olhar degradado pelos dias de apuros mentais e relâmpagos de sensatez. Ela é uma cidadã comum, tem família, tem filhos, mas por motivos ou condições seus e suas, prefere perambular, entre praças, calçadas, mas a panificadora Guarabirense sempre foi uma das suas referências espaciais, pois com certeza, encontra aquele café.

Enquanto me instalava em uma das mesas laterais da padaria Guarabirense, ao som do ventilador central e o burburinho da TV e dos clientes, pedi um café e um pé de moleque. Ela me observando ao longe, balbuciava dizeres inelegíveis e foi se aproximando. 

Pediu pra sentar e disse que queria um café. Então pedi dois e outro prato com talheres. Ela indagou sobre meu envelhecimento e disse que também se sentia mais velha. Enquanto os dois cafés chegavam, ela olhou para três cigarros já fora do maço e continuou a conversa, mas agora era sobre sentimentos. Me disse que havia chorado muito. Lhe indaguei os motivos. Disse ter se lembrado do seu pai, falecido há alguns anos.

Quem conhece Helena, sabe que muitas vezes, ela não fala coisa com coisa. Mas naquele momento, vi que sua memória e sentimentos, não eram apenas esquecimentos e desconexões. 
Em seguida, ela alterou o rumo da prosa e perguntou sobre minhas filhas e minha mulher. Lhe disse que estavam no comércio. 

Helena é uma dessas mulheres de rua que divide o espaço da cidade em fatias de loucura e sensatez. Que atravessa essa cidade, sempre caminhando a pé, tratada como mais uma invisível no meio da multidão.

Nunca imaginei se ela fazia conexões entre o mundo perdido dentro de nós e as coisas observadas nesse exterior de complexidade e fluxos cerebrais, em que o olho e cérebro se comunicam e constrem sentidos. Sempre lhe notava em meio ao mundo urbano de bem vestidos, bem calçados e aparentemente normais. Mas imaginava que não estivesse em seu radar mental e sentimental.

Naquele momento ela havia me confidenciado lembranças e tristezas. Recordações sobre seu pai já no cemitério. Também demonstrou preocupação com meus entes mais precisos como as filhas e a esposa. Na sua memória eu não estava só.

Esse não foi o nosso primeiro café incidental juntos, pois desde qy cheguei em Guarabira, vez ou outra, passou na Guarabirense para esse café com conversas e, me surpreendeu essa minha existência em seu mundo de sanidade e insanidade descontinuadas.

Naquele momento lembrei do ex-aluno e amigo Angelucio Fabião, pois foi o único a se interessar em fazer um estudo (TCC) sobre a Geografia da Percepção e o Espaço da Loucura em Guarabira. Helena sempre esteve em nosso campo de observação. Muitas histórias e até lendas urbanas curculam sobre o que levou Helena para as ruas de Guarabira.

Sempre gostei de observar fenômenos humanos e me vi pela primeira vez no mundo de Helena, por dentro de suas memórias, lembranças e esquecimentos, me vi existindo e, só em ela ter me notado envelhecido, percebi noções sutis de que estamos interagindo, bem mais, do que imaginei. 

Confesso que cheguei a pensar que Helena não sabia que sabia, mas estava totalmente enganado. Tomamos nosso café e observei mais do que falei. Perguntei se o café estava gostoso e ela respondeu que não gostava de pé de moleque, então pedi um pão doce para ela. Helena balançou a cabeça com um não, só queria o café e mais uma vez, olhou para o maço de cigarros, sabendo que não poderia fumar ali, se levantou e saiu sem se despedir.

Achei que estava invisível, mas esse mundo em que vivemos e interagimos, sempre nos surpreende. Quando ainda era jovem, cheguei a escrever um livreto de poesias em mimeógrafo, e o título era: "Prá Loucura não Passar!" Acho que preciso revirar minhas gavetas outra vez.

*Por Belarmino Mariano. Imagem autoral. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário