É a minha vida e gosto de escrever sobre meus sonhos, ainda tenho sonhado com frequência, mesmo estando em meio a era da globalização, com muita poluição midiática, eletrônica e sendo um sexagenário.
Em ondas de lembranças e esquecimentos, partes dos sonhos se perdem para sempre, outras partes acabam sendo cristalizadas e registradas na memória.
Vejo que quase ninguém lê ou se interessa por sonhos, talvez por não sonhar ou pelo fato de sonhos serem particularidades da gente mesmo e só quem sonha vê algum sentido naquilo.
Quando eu nasci eram outros tempos, nasci em janeiro de 1964, sem nenhum talento e no seio de uma família pobre, vivendo em terra alheia em uma casinha de tijolo batido, às margens das nascentes do rio Pajeú. Em Itapetim/PE.
Meu pai nasceu em 1915, na Craibeira, povoado de Cabaceiras/PB. Minha mãe Nasceu em 1918, em Riacho Fundo zona rural de Cabaceiras/PB, região Cariri.
Em parte do Óvulo e espermatozóide que me geraram são descendentes do além mar, provavelmente do Norte de Portugal e que chegaram até aqui ao semiárido. Mas também das tribos Cariri e do grande chefe e Guerreiro Pajeú da etnia Pipipã, são marcas dos povos que me originaram.
As etnias africanas chegaram nessa região e instalaram dezenas de quilombos e com certeza em minhas veias corre sangue negro, de resistência genética e de luta.
De acordo com o IBGE (2020), só para darmos um pequeno exemplo: Quilombo Negros do Pajeú; Quilombo Filhos do Pajeú;
Quilombo Raízes do Pajeú; Quilombo São Gonçalo; Quilombo Tiririca; Quilombo Ingazeira; Quilombo Negros do Gilú; Quilombo Poço dos Cavalos
Quilombo Borda do Lago; Quilombo Enjeitado, entre outros.
Meu pai contava que chorou e falou no útero de minha avó e depois de nascido ele conseguiu contar seus sonhos em detalhes. Além do mais, enquanto dormia, ele conseguia falar, cantar aboios e ainda tresvaliava (conversava ou falava enquanto dormia).
Ele tinha traços caboclos, enquanto minha mãe tinha traços europeu, mas pelo que lembro dos meus tios ou familiares paternos a pele morena era um traço bem comum e cabelos negros e/ou castanhos escuro eram uma mistura de raças.
Meu pai tinha os olhos cor de mel, bem clarinhos e parecia olhos de gato do mato, com manchas esverdeadas, eram bem miúdos e amendoados.
Ele nos olhava com a ternura de um pai que ama. E acho que herdei dele essa coisa de sonhar. E de viver um pouco no mundo transcendental, em que o céu do Sertão é forrado de estrelas, rico em cores vivas com azul forte e geralmente com poucas nuvens e um pôr do sol fascinante.
Aqui esterei expondo uma sequência de sonhos que sempre evitei revelar, mas não quero guardar algo que marcou a minha vida por tantos anos e que nunca consegui comprovar se existe alguma realidade ou sentido nas coisas que sonhei.
Aziza em Meus Sonhos de um Amor Distante e Inexplicável
Em meus sonhos, pelo que me lembro, ela apareceu entre seis e nove vezes em toda minha vida e nunca havia feito registros para além do mundo oculto de minha mente e memória. Mas agora, senti vontade de contar o que ainda me lembro, pois posso até ter sonhado mais e antes, tipo, quando ainda era criança.
Estou completando 61 anos, agora em 20 de janeiro e nunca contei nada disso para ninguém, pois em mim mesmo, sempre encontrei muitas incógnitas fantasiosas de vidas para além do aqui e agora.
Tentei expôr meus sonhos em uma cronologia, mas as datas e anos, podem não ser exatamente estes. Quando era jovem fazia manuscritos e até certo ponto, sempre busquei entender essas conexões.
Na primeira vez que ela apareceu em meu sonhos, o ano era de 1972, uma criança com aproximadamente 9 anos de idade. Eu estava com uns 12 anos e brincava ao final da tarde.
Levei um pequeno susto, pois estava sozinho. Perguntei seu nome e ela disse que se chamava Aziza. Era uma criança negra e desde aquele sonho, Aziza nunca mais saiu de minha mente infantil.
Acho que até esquecia de lembrar, pois sonhos são frequências e recorrências de muitas coisas, pessoas e lugares. Mas esse sonho com Aziza gerou uma amizade imediata, como se já fosse uma antiga conhecida de outros sonhos brincantes dos quais não recordava.
Lembro que brincamos de curral de gado, eram pequenas pedras como seixos rolados, trazidos do rio e transformados em gado. O curral era feito com gravetos de pau em baixo de uma velha aroeira que minha mãe usava para retirar folhas, floresce cascas para remédio.
Adoro coletar as pequenas pedras roladas e tenho muitas, pois sinto uma verdadeira atração por pedrinhas miúdas. Será que isso tem alguma relação com meus sonhos?
Naquele sonho, também tinha pés de carrapicho e outras ervas de pequeno porte, como coroas de frade espinhosas e serviam como locais de pastagem e pastoreiro do nosso rebanho.
Nesse sonho era como se ela fosse uma amiga imaginária e nunca esquecia, pois não era um rosto comum, apesar de parecer que já lhe conhecia de uma outra existência, o sonho parecia sequencial e achei que se repetia, mas foi único.
Depois, esse sonho com ela não se repetiu por muitos anos, mas era tão cristalino que sempre achei que iria reencontrar aquela menina na realidade ou em sonho outra vez. Mas isso não aconteceu e acho que esse sonho adormeceu em minha memória.
As vezes relembrava de Aziza e seus olhos eram cor de mel com a íris bem preta e as bordas dos olhos misturava o mel com o negro e pareciam olhos de uma leopardo fêmea.
Sua pele brilhava como um jambo maduro. Seus cabelos encaracolados e negros com os cachinhos colados ao couro cabeludo de sua cabeça, lembravam finos cachos de lã.
Quando acordei, percebi que estava em minha rede e aquela garota havia desaparecido, aí percebi que era um sonho e tomei um susto medonho. Quem era aquela menina e de onde ela veio?
Confesso que passei algumas semanas observando fisionomias de garotas negras, mas não a vi em nenhum rosto do meu cotidiano.
Seis anos depois, no dia 21 de março há exatos 90 dias em que eu havia completado 18 anos, já estava entre a virgília e o sono, quando percebi um peso forçando um lado de minha rede e aquele corpo de uma moça negra e linda havia se deitado ao meu lado.
Aziza estava com 15 anos de idade, os olhos brilhavam feito estrelinhas acesas, seus cabelos cacheados eram lindos e sua pele fina e macia só se separava da minha por uma fina e transparente anágua.
Aziza não era mais uma criança e os bicos dos seus seios roçando em meu corpo, eram como flechadas em minha alma. Eu sabia que estava sonhando e ela também sabia e disse que veio ao meu encontro por saudades.
O ano foi em 1982 e as chuvas de março caiam no telhado e escorriam pela lateral da casa. O barulho da chuva e o seu corpo seminu roçado no meu, me fazia arrepiar, mas ao mesmo tempo, me subia um calor inexplicável.
Ela beijava meu pescoço, cheirava meu corpo e seus beijos tinham sabor de cravo e canela. Uma sensação de amor intenso tomava conta do nosso corpo e conversávamos baixinho, cochichando ao pé do ouvido, como se não quiséssemos acordar nem a gente mesmo.
Lembro de ter perguntado de onde ela era e me respondeu que vinha das montanhas distantes e que ela existia para além daquele mundo dos sonhos, mas estavamos separados no espaço tempo de nossas existências.
Depois fiquei por anos a pensar que aquela mulher era de algum povoado das sereas da Borborema, entre o Cariri paraibano e Vale do Pajeú perbabucano, mas nunca tive essa comprovação.
Isso tudo me fascinou e pude perceber que ela era uma pessoa sábia e que dominava alguma mística ou exoterismo de transição para o desdobramento astral. Senti que aquilo era uma dádiva misteriosa que eu estava recebendo.
Como se aquele amor estivesse envolto em um véu de mistérios imateriais, típicos de sentimentos que ultrapassam o concreto mundo da realidade física.
Nos amamos por uma noite inteira e era um amor tântrico ou platônico, pois não fizemos sexo com a prática de penetração. Foi um sentimento de amar enigmático e em plena busca de kundalini entrelaçando nosso corpos, em que, todos os nossos chácaras estavam em sintonia perfeita.
Quando acordei, parte do meu corpo estava dormente e pesado, como se alguém tivesse dormido por sobre meu ombro esquerdo e na medida em que o adormecimento foi passando, comecei a lembrar daquele sonho perfeito.
Também percebi que havia passado por um orgasmo noturno, pois a pequena ejaculação molhava a minha região peniana. Mesmo assim, tinha consciência de que aquele sonho foi a coisa mais fascinante que já me aconteceu.
Depois desse sonho, passei a ser um observador de mulheres negras, mas observava como quem procurava diamantes ou outras pedras preciosas. Sempre com delicadeza e interesse buscava fazer amizade com garotas, mas nunca encontrei Aziza nestes contatos.
Certa vez, em viagens nos limites entre a Paraíba e Pernambuco, em um sítio de beira de estrada entre Cabaceiras e Riacho Fundo, vi uma moça linda em uma janela que nos deu informações sobre as condições da estrada, mas só relembrei do sonho, muitos dias depois.
Nessa época passei a me interessar por magia, esoterismo e meditação. Cheguei a entrar em uma escola exotérica ou gnóstica, e por 6 anos, passei a praticar relaxamento, concentração e meditação.
O exercício de desdobramento astral e as viagens astrais me fascinavam, os livros sobre exoterismo egípcio, etíope, as runas, as obras da russa Helena Blavatsky eram fascinantes, além dos movimentos hinduistas, budistas, taoístas, foram oceanos profundos em que mergulhei em busca de Aziza.
Me interessei por astronomia, física quântica, cartas de tarot, gnose, essencialismo e espiritualidade dos ancestrais indígenas e africanos. E nessa busca incessante encontrei novos amigos, novas experiências e amores reais, mas Aziza ainda era um sonho de amor.
Como toda essa busca era real, mas os sonhos não parecem ser, e com a vida adulta, perdi de viver aqueles sonhos com Aziza, sem saber explicar, passei a fazer contas, pois a conexão entre os 12 e 18 anos, dava 6 anos.
Aos 21 anos de idade, acredito até que, em meus desdobramentos astrais, cheguei conscientemente a uma região inóspita e montanhosa, mas não sabia exatamente onde era aquele lugar.
Vi que existia uma espécie de povoado, fogueiras acessas, cães alerta e currais de animais como gado, caprinos e ovinos, mas não vi as pessoas do lugar. A madrugada estava calma e todos dormiam.
Quando acordei, achei que fosse ao norte da África, talvez entre a Tanzânia e a Etiópia ou sul do Egito. Mas poderiam ser as serras do Cariri ou Sertão do Nordeste brasileiro. Fiquei com aquilo na cabeça por dias, mas não tive a certeza de que era o povo de Aziza.
Essa foi a primeira vez em que eu estava conseguindo indícios de um lugar para Aziza, mas o tempo espaço não me davam as reais conexões entre os mundos físico e astral. As conexões não eram completas.
Até que meses depois, por volta de junho de 1985, tive outro sonho e percebi claramente que estava em São Luís do Maranhão. Lá estava acontecendo uma festa e num pátio grande, como em uma área de trapiche ou pequeno porto, velhos armazéns e galpões, como se fosse um centro histórico, pessoas alegres estavam em um tambor de crioula em plena praça.
Sabia que conhecia aquele lugar e ne aproximei com cuidado e observei 3 homens negros, sentados em um tronco de madeira, enquanto aqueciam o couro dos tambores em uma fogueira de brasas e testava a sonoridade com as mãos.
Do outro lado da praça, já se apresentava um boi de matraca e com pedaços de tábuas eles davam o ritmo e o compasso dos instrumentos e das vozes que entoavam um bumba meu boi. Eram tábuas de diferentes tamanhos, tambores e grandes padeiros que acompanhavam canções sobre a ilha de São Luís.
Fiquei fascinado por aquilo tudo até que percebi uma mulher me observando, em meio aos ruídos, luzes da cidade antiga e a fumaça da fogueira, ela veio se aproximando e sorria como quem já me conhecia e falou comigo com um olhar de onça pintada no cio. Era Aziza e estava linda como sempre, com vestido rodado, brincos e colares extravagantes.
Naquele momento, os tambores começaram a soar e as vozes que estavam naquela roda, começaram a entoar um canto ancestral que nos colocava em transe e nos fazia sentir arrepios por todo o corpo.
Ela me olhava penetrante e se afastava lentamente, enquanto dançava em pleno mundo astral, rodopiava e fitava seus olhos em meu corpo. Seu vestido colorido rodopiava a saia e conseguia ver suas coxas torneadas de uma jovem aos 18 anos de idade.
Enquanto seu corpo de mulher negra bailava, seus cachos escorridos pelo pescoço flutuavam como se estivesse em câmara lenta. Depois ela se aproximou, segurou a minha mão e me beijou com tanto fervor que parecia uma espécie de quentão, com cachaça, cravo da Índia, canela e outras misturas de raízes da mata.
Em seguida, saímos de mãos dadas em meio ao povo que ali brincava e festejava sua ancestralidade. Sua mão quente e suada e seu rosto úmido pela transpiração da dança, brilhavam em meio a luminosidade da noite.
Quando lhe perguntei se era o seu lugar de origem, ela disse não, mas estava de passagem e visitando parentes. Um pouco à frente, um galpão colorido e com globos de luz, cintilava, enquanto um grupo de Raggae tocava e cantava uma música romântica.
Ela me segurou e se aconchegou em meu coração, enquanto a gente dançava suavemente. Que coisa mais deliciosa, que experiência transcendental.
Um baile delicado em meio a corpos suados e de vestimentas coloridas, o globo de luz girava e alguns no salão, fumavam livremente, espalhando pelo ar a fumaça e o cheiro forte de marijuana e acho que outras ervas da floresta.
Sem se despedir, ela tinha desaparecido em meio à fumaça. Quando acordei, estava na praia de Cabo Branco, à beira mar de João Pessoa. Enquanto amigos da vida real tocavam violão e cantavam Zé Ramalho na beira de uma fogueira acesa.
Percebi que me encontrava com a cabeça no colo de uma amiga e ela disse que eu estava em um sono profundo, que havia me excitado e balbuciava frases sem sentido sobre tambores de crioula.
Algumas garrafas de vinho espalhadas e outras ainda com vinho tinto, indicavam mais um luau entre amigos e amores proibidos. Disse para minha amiga que tinha dormido e sonhado. Ela me respondeu que parecia um sonho de amor, enquanto seus olhos brilhavam e davam a entender que gostavam de mim.
Percebi que a Vida é Feita de Sonhos
Em meio ao mundo da universidade, das diferentes teorias e do mundo do trabalho, fui me tornando adulto, comprei uma moto velha e acelerava para chegar aos clientes e a universidade como podia.
Na universidade encontrei novos amigos, novas paixões e amores clandestinos, pois era um universo de possibilidades. Nesse período, não havia abandonado a busca esotérica e já compreendia que se tratava de uma procura mística, em meio ao mundo material e a minha própria existência.
A poesia, a música e boas leituras faziam parte do meu ciclo de amizade e conhecimento. A militância política e os movimentos sociais estavam no cerne das questões de nossa época.
Entre o final da Ditadura Militar e a vagarosa reabertura política, os festivais e lutas por eleições diretas e livres, exigiam nossa participação e militância. As teorias anarquistas eram leituras atraentes, entre os socialistas utópicos e a ditadura do proletariado, a gente ia crescendo intelectualmente.
Eu era uma figura estranha, cabelos longos, barba longa e jeito riponga típico do estereótipo de esquerdista, misturava incenso e práticas de zen ou de meditação, com utopias de sociedade alternativa.
Aziza havia se tornado um sonho distante, lembranças de quando via um pôr-do-sol, uma lua cheia em meio ao caos urbano. As lembranças eram tão distantes quanto a própria Lua e perdi na memória profunda os sentidos de uma mulher feita de sonhos.
Quando andava de moto, em alguns momentos me tornava melancólico e sentia a falta de alguma coisas em meu ser. Nunca me senti completo, mas atribuía o que sentia ao stress do cotidiano e da vida corrida.
Novo Sonhos de uma Utopia Amorosa
Aos 22 anos de idade fui surpreendido por um amor platônico, uma mulher branca, olhes esverdeados, cor de gata selvagem. Era real, mas a sensação de algo parecido com sonho fluindo em cascatas foi me invadindo.
Esse foi um dos períodos mais intensos e extensos de minha vida. Eu era um homem com comportamento de apaixonado irredutível e irresponsável.
Essa mulher virou minha cabeça ao avesso, destroçou meu coração e com ela perdíamos a completa noção de tempo-espaço. Sentia seu corpo colado ao meu, enquanto saímos de moto para esconderijos recônditos, até que o entardecer virava noite e nem percebia.
Ela parecia um sonho de tão perfeita e bela, mas não me beliscava, pois se fosse sonho, não queria acordar. Então, quando ela sorria para mim, era como um flash que me seduzia tal qual a mariposa é atraída para a luz. Eu sorria de volta, enquanto meu coração brincava de bater tambor como criança traquina barulhando a alma.
Quando estava com ela, aquela alegria em lhe encontrar borbulhava em minhas entranhas igual a água revoltada caindo de um abismo e se transformando em uma cortina de fumaça a flutuar no ar.
Quando passava dias sem vê-la, sentia sua falta e era como se metade do meu ser deixasse de existir. Seu doce olhar e seu sorriso malicioso me faziam muita falta. Sua pele macia e seus cabelos castanhos escuros brilhavam em minha mente e nem sabia em que labirinto estava preso.
Já estava achando que ela era apenas um sonho, sabe aquele sonho que você sonha com a pessoa sem conhecer ou saber nada dela. Mas existia o lugar e o grande problema era esse, por mais de uma vez combinarmos o mesmo local e nos encontramos.
E quando nem esperava lhe encontrar, ela estava lá e ao final de tarde, com o Sol já no crepúsculo, meu peito se enchia de uma alegria moleque e de um amor quase infantil.
Confesso que dava um friozinho na barriga e aquela sensação de estar em uma roda gigante de emoções. Meu olhar se fixava em seus lábios e em seus olhos e lhe desejava como uma grávida desejava comer manga rosa quase madura.
Sempre tinha rotas e mapas para lhe encontrar, o que parecia um sonho, ganhou contornos de realidade, e a partir daí, passei a me beliscar com frequência, pois as experiências de sonhos com Aziza haviam desaparecido.
Naqueles dias em que estava começando a lhe conhecer, notei que você havia colocado mais alegria em minha vida. Te encontrar e continuar te encontrando era o que eu mais queria.
Depois de incontáveis encontros e desencontros, intermináveis tardes de pôr-do-sol, de nos deitarmos na grama como cães adolescentes que brincam de morder, ou na beira mar ao anoitecer com o barulho das ondas e a cidade acendendo as luzes, enquanto pequenas estrelas pintavam o céu, você desapareceu de minha vida.
Não lembro de despedidas, ou faço questão de não lembrar. Lembro que passei uma semana ouvindo músicas tristes como ir no campo acampar no mato e não querendo deixar de sonhar, sofria como quem perdeu parte de si.
Nunca lhe esqueci e confesso que, aprendi literalmente o que é um amor platônico, melhorei minha filosofia niilista e o amor pelo nada, pois vazios nunca mais seriam preenchidos e só o acaso dava conta em nos desencontrar.
Sem ela por perto compreendi que não existe porto seguro e ilusões eram mais comuns que os contatos de fadas e histórias encantadas que havíamos lido na adolescência.
Lhe perder de vista foi não mais me encontrar por inteiro. Ela nunca me viu chorar, não conheceu meu lado frágil, nunca soube da minha própria boca que homens são frágeis como cristais pendentes em lustres de mansões abandonadas.
Quando os Amores e Sonhos Acabam com a Gente
Nem ela e nem os sonhos com Aziza existiam mais. A vida de um homem e suas desilusões amorosas, sonhos de amores distantes e a esquisita sensação de perdas do que de fato, nunca teve.
Aos 27 anos, quando estava na primeira década de minha vida adulta, em meio a uma noite quente de dezembro, enquanto o ventilador espalhava o mormaço da noite, senti um dos sonhos mais vivos da minha vida, era tão cristalino que me assustava.
Era Aziza aos 24 anos de idade, uma mulher feita e muito linda. Estavamos em um lugar de montanha e floresta, e até parecia que havíamos ido ao encontro um do outro.
Ela estava triste e me disse que pertencia a outro homem e que desde o nosso último encontro havia sido prometida a um guerreiro de seu povoado. Que havia perdido o sentido e a conexão para me encontrar e que havia me perdido de vez.
Eu lhe contei que havia lhe perdido também, pois estava apaixonado por outra mulher, mas que o amor não estava mais entre nós, que agora era um homem dedicado ao trabalho dividido e triste com as coisas do mundo.
Aziza disse que havia sentido isso e não sabia explicar seus sentimentos. Que no começo não amava seu homem, pois tinha sido um casamento forçado, mas com o tempo aprendeu a gostar dele.
Que agora era mãe de uma menina linda e nunca havia me esquecido, desde quando ainda éramos crianças e que aqueles sonhos e sentimentos nunca haviam se perdido.
Nunca consegui explicar esses sonhos, nunca esqueci de Aziza e aos 30 anos, aguardei por várias noites, mas entre a vigília e o sono nada me aconteceu. Nenhuma conexão especial e senti que havia perdido Aziza para sempre.
Ao longo da minha vida, casei duas vezes e me senti feliz pela experiência de ser pai e de amar outras pessoas. No primeiro casamento, tive um filho em 1998. No segundo matrimônio tive duas filhas, uma em 2008 e a outra em 2011.
Meu filho e filhas só surgiram em minha maturidade. A vida nos reservava caminhos que nem imaginamos. Amores inexplicáveis que a vida nos revela, amores reais, sentimentos e emoções de fato.
Durante todos estes anos, perdi o contato de sonhos com Aziza. Ela marcou a minha vida, nunca compreendi os sonhos e seus significados, mas Aziza é parte do meu ser incógnito.
Ela sempre existiu em minhas memórias de sonhos, pode até ter sido uma amiga imaginária que virou uma paixão imaginária e um amor platônico idealizado no mundo fantástico dos sonhos que não se explicam em palavras ou escritos.
Nestes dias de agora, resolvi rebuscar minhas memórias, revirar minhas gavetas e encontrei velhos manuscritos, textos antigos, poemas e poesias que havia rabiscado e outros sonhos que nunca expliquei.
Kyianajê, Quem é Essa Mulher dos Meus Sonhos?
Aos 45 anos de idade, tive um sonho inexplicável, uma experiência quase xamânica e que abalou todas as minhas crenças religiosas, pois a ancestralidade é muito mais significativa do ponto de vista da espiritualidade do que qualquer ilusão religiosa.
Nesse meu sonho não tem um começo claro e nem um final definitivo, mas não consegui entender como cheguei ali, pois era um lugar conhecido e de retornos recorrentes, reencontros e regressos atemporais em terras próximas daqui, mas me dava s sensação de que eu vinha de outro mundo.
Eram pessoas que em minhas memórias conhecia, mas não tinha a dimensão de onde, quando e como. Os nomes em quase todos seres desse sonho e o lugar eram tão reais que eu sabia que esse sonho era no Maranhão, lugar que só fui uma vez e lá passei uma semana.
Nessa noite acordei, levantei da cama, fui ao banheiro, bebi água e voltei a dormir e a sonhar o mesmo sonho.
Sabia que estava navegando pela bacia do rio Mearim (rio navegável), desde sua foz e subia o rio até seu afluente Pindaré (anzol pequeno) por um dia inteiro, conduzido por dois guerreiros em uma pequena embarcação artesanal.
Os nomes dos jovens eram Iberêanajê (rio do gavião) e Aimberé (forte e duro). Eles como filho do povo Pukobyê (Gavião-jê), carregavam consigo um arco-flecha de sua altura e usavam símbolos tribais ou pinturas em tons de roxo, azul, preto e vermelho, além de cocais feitos de cipó, tiras de cascas de árvores e penas de carcará e outros gaviões.
Quando chegámos à primeira povoação já era pôr-do-Sol e a luz dourada contrastava com a água, mata fechada e montanhas distantes. Aquele cenário se repetia por todo o trajeto, mas a luz declinante do Sol dava uma beleza especial àquela chegada.
As crianças surpresas e alegres se aproximaram da pequena embarcação, enquanto os adultos em sua língua macro-jê, estabeleceram conversas incidentais de boas vindas e desembarcamos em um pequeno trapiche de troncos e árvores em estado bruto.
Ainda estava querendo entender quem eu era naquele território e naquela situação, aparentemente conhecida e com a sensação de já ter vivido aquilo outras centenas vezes.
Observei em meus trajes um tecido cru e muito amarrotado, como de uma época secular, além de pele de animais. Nos pés uma espécie de calçados de couro grosso e costurados a mão com tiras finas de couro. Os jovens que me conduziram estavam descalços e só cobriam as partes íntimas com couro de animal e tiras de couro.
Na aldeia em forma semi circular, uma das aberturas dava para a margem esquerda do rio Pindaré, em forma de lua, quarto crescente e já existiam umas três ou quatro fogueiras acesas e muita carne de caça, além de peixes, estavam sendo assados ou cozidos sobre umas pedras aquecidas e palhas de bananeira. Também notei batatas, inhame e farinha de mandioca em cuias. Também percebi castanhas e caldo de açaí.
Juro que estava com muita fome e meus olhos se alegravam com o que via, mas ainda não era o momento para degustação.
Fui levado ao ancião da tribo que em traje cerimonial me recebeu com sorriso e admiração. Eu percebi que já o conhecia e ele se levantou, passou a mão esquerda em minha cabeça e em meu rosto, como se me oferecesse uma proteção espiritual, enquanto falava com seus deuses em uma sonoridade e ritmada canção de boas vindas.
Eu observava tudo com calma e alegria no coração, sentamos em um tronco e ele conversava com os jovens que me acompanhavam e era como se eu estivesse entendendo tudo, mesmo sem dominar a língua Jê.
Enquanto isso, algumas crianças se aproximaram admiradas e me tocaram, como quem se aproximava de alguma coisa pouco comum.
Minha barba longa, grisalha e volumosa era o que mais lhe atraía. As mais afoitas tocaram meu rosto com suas pequenas mãos, alisando a barba impressionados, pois não era comum homens peludos e com olhos e cabelos castanhos claros.
Todos reunidos e o chefe ancião e sua mulher, fizeram um ritual aos antepassados, aos deuses e aos alimentos e fomos servidos com alegria. Ao redor da fogueira maior e em brasas, ouvia conversas incidentais e aquilo foi me despertando para Kyianajê (Kyi, cabeça de anajê, gavião).
Cabeça de Gavião era a mulher do meu sonho, minha esposa em mais de uma década. Mas não perdera contato com ela há uns três anos.
Em meu sonho sabia que não era de agora, foram vidas antigas, talvez seculares ou remotas e fui levado a uma missão para o Norte do rio Amazonas, nas terras francesas das Guianas, perdendo vínculo com aquele povo.
Voltar ao seio daquela nação era uma dádiva que não se explicava na lógica do tempo unidirecional, pois naquele momento, estava diante de uma singularidade e de volta a uns 300 anos, quando era navegador e garimpeiro francês em territórios do rio Mearim do Maranhão brasileiro.
O clarão da fogueira alimentada por mais lenha me despertou para entender que estava nas margens do rio Pindaré, nas terras ribeirinhas do povo
Pukobyê (Gavião) e seguiria até os Parkatêjê (tribo da floresta fechada), para finalmente encontrar os Kyikatêjê (tribo do monte), onde finalmente, iria encontrar Kyianajê e seus parentes Akrãtikatêjê, filhos das terras altas como eram conhecidos.
Enquanto eu sonhava em meu presente distante, dormi entre os Pukobyê. Em um sonho dentro de outro sonho, acordamos de madrugada e seguimos viagem, entre igarapés, igapó e por terra, em trilhas estreitas que encontravam a terra firme.
Andamos cerca de vinte quilômetros, mata a dentro, com subidas suaves e planícies encharcadas e arenosas. Nos alimentamos de carnes assadas na noite anterior, farinha e frutas encontradas no caminho até chegarmos às terras Parkatêjê.
Na povoação da floresta fomos recebidos com muita alegria, pois todos eram aparentados de minha Kyianajê e foi através dos Parkatêjê, quando procurava a terra das pedrinhas que conheci o povo Gavião da cabeça da serra.
Nos alimentamos e seguimos viagem pois a ideia era chegar em casa, ainda em claro e tinha uma subida para esse terceiro trajeto. Para o povo gavião cada despedida é um para sempre, mesmo que a gente volte amanhã. A Anciã nos abençou na partida, pois o chefe estava caçando com outros guerreiros.
A viagem era um misto de paisagem selvagem, rios e riachos a atravessar, mas os jovens guerreiros conheciam bem aquelas veredas. Quando um novo pôr-do-sol já começava a deixar o céu laranja, ouvimos vozes distantes e gritos de kará-kará, como se as pessoas estivessem imitando pássaros.
Um grupo da aldeia do alto, estava à nossa espera com mantimentos, água e tochas para clarear o resto do caminho. Distantes a cerca de um quilômetro, mas devido a declividade do terreno e a Pedra Grande (Pedra do Gavião), que servia de clareira e ponto de observação, era possível ver e ouvir as vozes distantes, pois ecoavam na baixada.
O coração acelerou os batimentos e naquele momento, sentimentos de corpos e tempos distantes estavam prestes a se encontrar e, aos poucos, fui me aproximando de Kyianajê como se aquele sonho fosse real demais.
Ela com os cabelos negros, olhos negros redondos e uma pele cor de canela, com roupagem cobrindo suas partes íntimas, os seios a mostra, com cocar de pena de Gavião e Arara, e desenhos de geometria tribal, em preto e vermelho no rosto, além de urucum também nos lábios, era uma visão verdadeira do paraíso.
Ficamos em transe, paralisados e nossas carnes trêmulas se tocaram em um abraço demorado. Nos beijamos e nos olhamos como nas muitas vezes em que estivemos juntos. Na pedra do gavião o sol lançava suas últimas flechas de luz e uma metade dele já havia desaparecido na linha do horizonte, enquanto nossos olhares se encontravam naquela singularidade cósmica.
A alegria tomou conta de todos, suas irmãs e irmaos, primas, primos, guerreiros adultos e algumas crianças que acompanhavam o grupo. Naquele meio estavam nossos três filhos, entre 4 e 12 anos, dois meninos e uma menininha de braço. Abajê (gavião) e Thauan (argila vermelha), me abraçaram fortes e com alegria.
A pequena ecoema (filha da manhã), me olhava desconfiada sem querer aproximação, não quis sair dos braços de sua tia Eçaúna (Olhos Negros). Sabiamos que era uma questão de tempo, pois quando parti ela ainda não havia nascido.
Enquanto a noite escurecia, seguíamos pelas veredas estreitas, era uma caminhada lenta e com pequenas tochas de varas verdes amarradas e resinas de plantas, servindo de transporte de brasas e chamas acesas.
Minha amada Kyianajê segurava em meu ombro e seguia um passo nas minhas costas, pois o caminho era estreito e perigoso, mas estávamos no mesmo ritmo e sintonia, como se as nossas energias estivessem se reconectando de imediato.
Ao caminharmos, ela me disse que Ecoema significava filha da manhã, pois havia nascido ao amanhecer e tinha os olhos castanhos claros como os meus. Na nossa frente Ecoema, se projetava para trás nos braços de Eçaúna e olhava para minha barba, olhos e cabelos com surpresa. Seus olhinhos claros brilhavam na luz dos senderos de folhas de açaí ao fogo e fui acordando em meio ao suor e lágrimas, pois não chegamos até a aldeia tão esperada, enquanto aquele pequeno rosto infantil me fitava , sem entender o que era aquele novo rosto e homem tão ligado a sua mãe.
Não queria que esse sonho acabasse assim, diante de uma antinomia e ausência de temporalidade. O mais estranho era saber que o tempo não acaba, nunca acaba, pois para tanto precisaria do selo da existência.
Mesmo que sejam fragmentos de um sonho, senti o colapso de algo que, mesmo não possuindo materialidade e, se resumindo a eventualidade de um sonho, dentro de outro sonho, fiquei chocado com um outro eu em pleno paradoxo do inexplicável.
Como poderia existir algo que não existe de maneira unidirecional e se o tempo se mede, como medir o tempo em sonhos ou ordenar causas e efeitos de sonhos, que parecem autônomos, dentro de nós?
Tive que inventar um tempo e um espaço juntos, pois em meu sonho o tempo e o espaço estavam separados. Será que nos sonhos o tempo se transforma em espaço? O tempo se funde com o espaço, ou o tempo é apenas uma sombra a se projetar no espaço?
Espero reencontrar as linhas ou fios dos novelos de Ariadne para continuar o quê, e até onde já sonhei, pois quero reencontrar a minha família, Kyianajê, minha filha Ecoema, meus filhos e aquele povo que me acolheu nestes fragmentos de sonhos tão lindos.
Por Belarmino Mariano. Imagens das redes sociais.
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